1. Trump acha que venceu na Síria. Assad está a vencer na Síria. Erdogan vai vencer na Síria. Putin vencerá na Síria. Sete anos, meio milhão de mortos, um país desfeito e vários líderes obscenos.

2. “Vencemos o ISIS na Síria, a única razão para estarmos lá”, revelou Trump esta semana, anunciando que vai retirar os 2000 soldados americanos no terreno. Há tempos que ameaçava isto: ir contra o seu próprio partido, os seus próprios conselheiros, o Pentágono e aliados europeus. Pouco depois, a responsável de comunicação da Casa Branca informou que a retirada começara mesmo.

O Pentágono já não disfarça que discorda. O conselheiro nacional de segurança declarou-se “lívido” com o anúncio de Trump. Senadores republicanos como Marc Rubio (Florida) condenaram: “É um grande erro. Se não for revertido, vai assombrar esta administração e a América durante anos.” O senador Lindsey Graham (Carolina do Sul) tuitou: “O ISIS não foi derrotado na Síria, no Iraque, e — tendo acabado de voltar de lá — certamente não no Afeganistão. A decisão de retirar será também vista como um incentivo para o desejo que o ISIS tem de voltar.” Já o ministro britânico da Defesa Tobias Ellwood disse que o ISIS estava “muito vivo”.

Unidos contra Trump, mas não porque sejam uns santos. Parte do horror da Síria também é isto. Gente unida pelas más razões. Vários grupos diferentes de más razões. Erro, exploração, abuso de todos os que têm poder. E nisto se consumiu um povo, uma geração, um país.

3. Há diversas explicações para a decisão de Trump. Uma é que assim nos distrai dos seus problemas legais. Outra é que o presidente turco Erdogan lhe ligou a pedir para ele deixar cair, enfim, os curdos, que têm sido aliados dos americanos, e estão a lutar contra Assad no Nordeste da Síria. A Turquia esmaga confortavelmente os curdos no seu próprio território e tem feito por esmagar os dos países vizinhos, porque esmagar os curdos é um desígnio nacionalista turco. O facto é que Trump tirar os rapazes da Síria deixa pendurados os curdos, o que é excelente para o regime turco se fazer a eles. E se 2000 soldados no terreno não parece assim tanto, e os EUA teoricamente continuam a poder fazer ataques aéreos, o peso simbólico dessa retirada é enorme. Apodreçam aí, é o que a decisão de Trump sinaliza.

Depois, claro, há a Rússia. Trump terá acordado com Putin um plano em que os EUA passam a aceitar Assad, já não querem “uma mudança de regime, apenas mudanças no regime”, como claramente disse esta semana o novo enviado dos EUA à Síria, James Jeffrey.

Confusos?

De facto, se pensarmos como a coligação liderada pelos Estados Unidos apresentou Assad como um ditador implacável, chacinador do próprio povo. Assad é isso mesmo, mas agora o presidente dos Estados Unidos da América está-se nas tintas.

Houve um tempo em que muita gente acreditou que esta guerra era o mau Assad contra os rebeldes apoiados pelo “Ocidente”. Os rebeldes afinal eram uma salada de tudo e o seu contrário. O mau Assad foi sempre o mau Assad, e continuará a ser, porque afinal o “Ocidente” tem demasiado em que pensar. E o “Ocidente” nunca existiu.

4. Porque é que Trump há-de estar interessado em fazer o jogo de Putin? O que ganha em troca? Controle sobre o Irão, o seu inimigo favorito.

No tempo de Obama, havia acordo nuclear com o Irão e apoio aos rebeldes sírios (incluindo gerar os que vieram a ser o ISIS). No tempo de Trump o Irão é o Grande Mal, e o importante é que a Rússia consiga conter o poder pró-iraniano na região.

O que incluirá afastar as forças pro-iranianas dos Monte Golã, território sírio ocupado por Israel. Bem como Israel ter licença para atacar alvos pró-iranianos na Síria.

5. Entretanto, a humanidade e desumanidade do que foram estes sete anos é difícil de alcançar porque se tornou quase impossível o acesso dos repórteres. Há dias falei com um sírio em Damasco que trabalha para uma organização humanitária. Que ele saiba, não há nenhum repórter estrangeiro baseado lá. Os poucos que vão e vêm demoram meses para conseguir um visto, e quando chegam são controlados o tempo inteiro pelo regime de Assad. É caríssimo, é perigoso e não é livre. A tal ponto que a esmagadora maioria das organizações humanitárias já não têm equipas de comunicação. Raramente deslocam pessoal para inventariar uma situação, entrevistar gente, documentar realidade.
Não sei como é o controle nas poucas bolsas de rebeldes que Assad ainda não tomou, mas ir lá requer muito dinheiro e tempo. Dinheiro e tempo que quase toda a imprensa do mundo deixou de ter, que os freelancers não têm. Para além dos perigos.

O que se passou ao longo destes sete anos na Síria, o que continua a acontecer, está por contar em profundidade. E além do meio milhão de mortos, são milhões de deslocados, de feridos, de traumatizados. Gente viva.

6. Mais o que se passará nas prisões, em campos de detenção. O que envolve quem é vagamente suspeito de pertencer ao ISIS, ou a algum movimento rebelde. A revista “New Yorker” publicou esta semana uma reportagem sobre as vinganças no Iraque pós-ISIS. Campos atulhados de suspeitos, centenas já enforcados, muitos nas cadeias, sem hipótese de falar com um advogado.

Os EUA nunca pareceram saber o que fazer da Síria. Agora estão a sair deixando o que frequentemente deixam para trás: muitas vidas perdidas.