Não tenho memória de nos ver, portugueses, tão envolvidos com uma eleição noutro país como nestas eleições brasileiras. É natural, poderão dizer – país irmão, língua comum, história partilhada. Foi mais que isso – esta eleição transbordou do imenso Brasil, não apenas para Portugal, mas para muitos locais onde brasileiros contagiaram tantos outros com essa alegria de viver que parece ter sido inventada por eles. Em Portugal, é raro quem não tenha amigos, primos, conhecidos do outro lado do Atlântico ou do outro lado da rua. Somos próximos.
Mas a intensidade com que se viveu esta eleição vai para lá dessa proximidade. A cada discussão, a cada troca de argumentos, e também a cada escalada de agressividade, estava patente uma antecâmara do que poderia ser a disputa entre portugueses numa eleição em Portugal. Lado a lado com gestos e palavras bonitas, lado a lado com preocupação genuína com o que será, que será esse Brasil depois de 28 de outubro, estiveram e estão também dois lados que tendem a polarizar uma discussão que devia ser sobre o que é certo e mas que é muito mais sobre quem está errado. Uma discussão que está quase sempre à beira do precipício do nós e eles e do quem ganha e quem perde. Hoje no Brasil, amanhã em Portugal ou em qualquer lugar.
Nas últimas semanas, ouvi na voz direta vários argumentos de quem vive no país que acabou de eleger Jair Bolsonaro. Ouvi críticas violentas ao PT e a Haddad enquanto candidato, recordando todos os danos que o partido causou ao país. Por isso, disseram-me, não poderiam votar neles. Ouvi quem recordasse, semana a semana, que o destino deste Brasil tinha sido escrito por Lula, que a ele cabia a responsabilidade do mal maior. E, ainda assim, quem o dizia, ia votar no PT e em Haddad, precisamente por causa do mal maior. Mas nada me impressionou mais do que ler um texto escrito por um brasileiro, homossexual, a viver há 30 anos em Portugal. Um texto em que apenas interrogava que país era esse que algumas pessoas afirmavam "estar agora a virar à direita". Para ele era exatamente o mesmo país maioritariamente conservador onde há 30 anos se sentiu a mais numa sociedade que convivia mal com a diferença.
Talvez tanto sentimento contraditório explique porque a percentagem dos votos nulos é, de acordo com as projeções, a maior desde 1989 - cerca de 7,4% dos eleitores. Aqueles que não votaram nem Bolsonaro, nem Haddad, aqueles que porventura mais órfãos se sentem de quem os represente.
Dos vários relatos que ouvi fiquei com a certeza de que não há um Brasil real, há vários. Da mesma forma que existe um Brasil inventado por tantos quantos são capazes de o sonhar - e essa é a matéria-prima porventura mais rica de um país "abençoado por Deus e bonito por natureza". Terá de ser por aí, pelo sonho, que vamos.
Ambos os lados da barricada invocaram essa entidade diáfana – o povo. Dependendo do lado, havia o bom povo que quer ordem e progresso como manda a bandeira brasileira e por isso vota Bolsonaro. Ou a populaça, ignorante e boçal, que vota Bolsonaro. E que se confrontava com o bom povo, que ama a liberdade, a paz e democracia, e que vota Haddad. Que também era a populaça, dos corruptos e oportunistas, que votam Haddad.
O bom povo que teria votado maioritariamente Lula se este tivesse sido candidato, e o bom povo que foi maioritariamente às urnas para castigar o PT de Lula, e Haddad enquanto seu sucessor.
Isto explica porque tanta gente se zangou, se desesperou, se desligou de qualquer conversa. Talvez até explique porque gente que podia fazer a diferença desistiu de conversar. É fácil perceber que cada um está a falar para os seus, cada um está a alimentar a sua bolha de oxigénio – não é sequer preciso ter acesso às inenarráveis contas de WhatsApp, a rede social que entra pelas piores razões na história destas eleições. Basta entrar em contas de YouTube ou de Facebook para perceber que o contraditório não mora ali. Ali só mora elogio e autovalidação – o resto é eliminado ou simplesmente quem podia entrar para dizer algo que valesse a pena ser discutido preza a sua sanidade mental e não o faz.
E a bolha continua a crescer e aqueles que vivem lá dentro estão cada vez mais convencidos que estão certos e, sobretudo, que os outros estão errados - como podiam não estar se o eco lhes devolve a voz?
Talvez por isso aqueles que montaram bancas nas ruas das cidades brasileiras para conversar com quem discordava deles ou estava simplesmente indeciso tenham sido uma pequena flor a crescer entre a erva daninha. Sim, quem o fez tinha como objetivo convencer no voto em Haddad. Sim, a “bolha” tenderá a reduzir tudo à discussão sobre quem está errado. Mas sejamos capazes de resistir à cegueira e talvez consigamos ver nessa disponibilidade para o diálogo aquilo que deve ser a defesa da democracia.
A democracia é o governo do povo expresso pela maioria do voto naqueles que se voluntariam para representar esse mesmo povo. Antevejo sorrisos cínicos pela escolha do verbo voluntariar. Deixem o cinismo para trás - é a vossa vida, é a nossa vida enquanto sociedade, aqui, no Brasil e em qualquer parte do mundo. Tratar todos os políticos como iguais não faz de quem vota melhor que esses políticos que elegem e dos quais desconfiam o tempo todo. Quanto mais cínicos forem, mais políticos que odeiam políticos teremos a voluntariar-se para governar o povo. E quando enfim percebermos que sem política a palavra democracia deixa de fazer sentido, podemos ter pela frente um caminho bem mais difícil do que a imperfeita democracia em que vivemos.
A democracia não é um jogo de futebol, não somos nós contra eles. Somos nós por nós – o governo do povo e para o povo e não da populaça.
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