Donald Trump é tratado nos bastidores do protocolo e da segurança pelo acrónimo POTUS (President Of The United States). Há cerca de uma semana, o POTUS surpreendeu toda a gente ao assumir, sem consultas prévias, que quer comprar a Gronelândia. A resposta dinamarquesa e dos gronelandeses fica resumida numa palavra: “Absurdo”. Copenhaga ainda começou por reagir com ironia quando a coisa surgiu como rumor. Assim que o capricho do POTUS ficou assumido, de imediato, em uníssono, o poder oficial dinamarquês rejeitou em absoluto sequer discutir alguma forma de negociação sobre a gigante ilha gelada, rica em tesouros minerais. O POTUS amuou e, por isso, cancelou a visita de Estado à Dinamarca marcada para 2 e 3 de setembro, e que a rainha Margarida fez preparar com todas as pompas, tarefa que nos últimos meses mobilizou centenas de pessoas. Ficou aberto um incidente diplomático entre os EUA e a Dinamarca. Também fica em ponderação a qualidade de quem dirige o mundo.
1. Imaginemos que o reino espanhol propunha à república portuguesa a compra do arquipélago da Madeira. Que ondas desencadearia uma tal proposta?
É facto que até há um diferendo luso-espanhol sobre a linha de fronteira nas 82 milhas de oceano entre as Selvagens e as Canárias. A discussão centra-se na definição sobre se as Selvagens contam como ilhas (posição portuguesa) ou como rochedos (argumento espanhol). Mas não passa por alguma cabeça em estado de aceitável sanidade que o rei Felipe ousasse apresentar a um país amigo e aliado uma tão absurda proposta, fosse de compra da Madeira, dos Açores, do Algarve ou de qualquer outra parte de Portugal.
2. A história do mundo tem episódios assim de compra de soberania, com os Estados Unidos da América como comprador: em 1803, o presidente Thomas Jefferson fechou a compra à França, por 15 milhões de dólares, da soberania sobre os mais de dois milhões de quilómetros quadrados de Louisiana; em 1867, Andrew Johnson assinou a compra do Alasca ao império russo; em 1917, Woodrow Wilson ratificou a convenção das Índias Ocidentais, que transferiu da Dinamarca para os EUA a soberania sobre as ilhas que passaram a ser designadas como Virgens. São negócios de outros séculos.
3. Nos últimos dez dias, aconteceu algo de inédito: a proposta de compra de um vasto território sob a forma de transação imobiliária. Anotemos os factos: na quinta-feira, 16 de agosto, o Wall Street Journal revelou que Donald Trump tem manifestado, repetidamente, interesse na compra da Gronelândia; fontes da presidência dos EUA confirmaram a ideia do chefe e o assunto fez as delícias da paródia dos comediantes nos habituais shows televisivos à noite; no domingo, 18 de agosto, o próprio Trump entendeu confirmar o interesse na aquisição da Gronelândia, banalizando a coisa como “basicamente um negócio imobiliário”.
A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, estava nesse domingo em visita à Gronelândia e arrumou logo ali a questão: “A Gronelândia não está à venda”. Trump insistiu, com um tuíte acompanhado por uma fotomontagem que mostrava o arranha-céus de vidros dourados do hotel Trump em Las Vegas a levantar-se da bucólica paisagem da Gronelândia, com a legenda: “Prometo não fazer isto”. A primeira-ministra dinamarquesa fartou-se e disparou em tom glacial: “Este tema é absurdo. Felizmente, já não estamos no tempo em que havia quem comprasse e vendesse países e povos”.
Donald Trump que, mesmo como POTUS, nunca larga o estilo abrupto, tantas vezes rude e nada diplomático, para quem tudo é pessoal e que não aguenta uma desfeita, decidiu cancelar a visita de Estado à Dinamarca marcada para os próximos dias 2 e 3 de setembro. Desfez uma visita de Estado a um leal país aliado porque o narcisismo dele não suporta ser contrariado.
4. A Gronelândia é um laboratório essencial para o combate às alterações climáticas. É uma imensidão gelada e escassamente povoada: com dois milhões de km2 é a maior ilha do mundo (a Austrália e a Antártida são maiores, mas cabem na classificação de continentes), mas com apenas 56 mil habitantes, com cultura original que tem lidado mal com o crescente turismo dos últimos 20 anos – há notícias de problemas sociais traduzidos em alcoolismo, abuso de drogas e suicídios.
Os cientistas atestam que dentro das sucessivas camadas de gelo da Gronelândia há matéria fundamental para o estudo da evolução do clima. Há alertas destas últimas semanas para o derreter sem precedentes de imensas porções antes geladas, com relato de perda num só dia deste agosto de 12,5 mil milhões de toneladas. A Gronelândia é dos lugares do planeta onde a subida da temperatura média está a ser mais alta.
Ao mesmo tempo, a Gronelândia é um extraordinário centro do interesse geopolítico: pelas rotas marítimas do Grande Norte que ficam possíveis e pelos preciosos recursos em ferro, zinco, ouro e diamantes já detetados no subsolo, para além do petróleo, mas todos de muito complexa exploração.
As superpotências, China, Rússia, Estados Unidos, todas estão interessadas nas riquezas do Ártico e, especificamente, da Gronelândia. Mas, o que lá acontece, diz-nos respeito a todos, de modo mais acutilante neste tempo de alterações climáticas.
5. O interesse de Trump na Gronelândia até pode ser legítimo. Mas transformou-o em capricho gerido de modo desastroso. A prioridade da natureza não pode estar sujeita às práticas em volta do tabuleiro de um jogo de Monopólio.
Trump é um homem feito nos grandes negócios. Mas a defesa do planeta tem de ser prioritária sobre esses negócios, seja de Trump, Xi Jinping ou Putin. Neste caso da Gronelândia, o capricho de Trump revela falta de noção da realidade e até infantilismo. Este é um POTUS que está a 14 meses da possível reeleição.
(Artigo atualizado às 15h15)
Comentários