Agora, com o Covid-19, abundam incertezas sobre o comportamento do vírus. Mas já não deve haver alguém a quem falte a noção da gravidade e da urgência que nos mobiliza a todos para o combate ao vírus que nos está a atacar e a certeza de que para nos protegermos, a nós e ao conjunto da comunidade, temos, todos já o aprendemos, de, durante umas semanas, sem que possamos programar um horizonte, nos extrairmos todos do contacto físico com os outros. É e vai ser uma experiência difícil. Merecíamos ser poupados à epidemia de especulações e aldrabices sobre o Covid-19.
Há evidência de que a ciência nunca se mobilizou tanto, em cooperação global, para avançar no conhecimento sobre um agente infeccioso que está a causar pandemia.
É, no entanto, lastimável que publicações pseudo-científicas estejam a espalhar o alarmismo.
Há uma publicação que se tornou um caso: o artigo “Coronavirus: Why You Must Act Now”, de Tomás Pueyo, dirigido a políticos e gestores. É, na primeira impressão, um artigo científico sério: está organizado em capítulos, suportado por muitos gráficos que mostram a evolução do Covid-19 país por país, com dados que parecem consistentes, apoiados em modelos matemáticos.
Um amigo que integra uma das equipas francesas de investigação sobre o Covid-19, a quem consultei sobre dados neste artigo, chamou a atenção para o que se afigura aberrante numa publicação científica.
Tomemos números oficiais: a autoridade sanitária espanhola comunicou nesta segunda-feira, 16 de março, haver em Espanha 9.300 pessoas contaminadas (334 faleceram, 530 estão curadas), sendo que a região de Madrid (Comunidad de Madrid) é a mais atingida, com 4.165 infetados. Ora, no artigo de Tomas Pueyo é estimado, a partir de modelos matemáticos, que Madrid esteja com 10.000 a 60.000 casos.
Em França, também números oficiais, estavam confirmados na manhã desta segunda-feira 5.423 casos de pessoas infetadas, havendo 127 mortes. O cálculo de Tomas Pueyo situa o número atual de infetados em França entre os 24.000 e os 140.000.
Intervalos assim largos, num delta que varia entre 1 e 6, escapam ao rigor que carateriza os artigos científicos. O que Pueyo nos apresenta, num artigo que na última semana teve mais de 30 milhões de visualizações e que até interessou um comentador habitualmente bem preparado e bem documentado como Paulo Portas no quadro exposto aos 14 minutos do espaço Global deste último domingo, na TVI, tem tom alarmista e revela-se acientífico.
Quando corremos o artigo de Pueyo em “page down” encontramos a imagem difundida por todo o mundo da enfermeira italiana, identificada como Francesca Mangiatordi, exausta, adormecida sobre o teclado do computador. A imagem aparece no artigo de Pueyo sem referência ao autor, falta impensável num cientista credível.
Quando se pesquisa o CV de Tomás Pueyo, na expectativa de encontrar histórico como epidemiologista ou especialista em saúde pública vemos que é afinal alguém “Currently leading a billion-dollar business”, que faz conferências TED sobre “contar histórias que cativam” ou sobre o storytelling no último Star Wars.
Pueyo tem toda a liberdade para comentar o que entender. Faz muito bem ao recomendar que todos observemos o distanciamento social. Mas é abusivo que pretenda aparentar respeitabilidade científica para propagar teses alarmistas. Mais de 30 milhões entraram pelo artigo de Tomás Pueyo e provavelmente acreditaram, tanto que comentadores experimentados também se deixaram influenciar e contribuíram para propagar o que não tem consistência científica e causa angústia.
Coisas como esta podem potenciar a viralidade do negócio de Pueyo. Mas intoxicam consumidores menos prevenidos.
É mesmo preciso cuidarmos a credibilidade do que nos chega. Por agora, não temos modo de comparação entre este Covid-19 e pandemias como a trágica gripe espanhola, ainda que estejamos a constatar que este vírus de agora está a colapsar a normalidade.
A ter em conta:
Pode ser a esperança de aproximação à vacina?
O Covid-19 põe-nos numa recessão pior que a de 2008?
A primeira volta das eleições municipais francesas (com decisão final adiada pelo coronavírus) confirma o reforço dos ecologistas e a relativa satisfação dos parisienses com de Anne Hidalgo, uma das raras socialistas que segue na frente.
Joe Biden é cada vez mais o democrata para o duelo com Trump.
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