Essa ligação, entre direito e cultura, manifesta-se de uma maneira muito especial e decisiva no campo do direito constitucional, já que “a Constituição reflete a formação, as crenças, as atitudes mentais, a geografia e as condições económicas de uma sociedade e, simultaneamente, imprime-lhe carácter, funciona como princípio de organização, dispõe sobre os direitos e os deveres de indivíduos e de grupos, rege os seus comportamentos, racionaliza as suas posições recíprocas e garante a vida coletiva como um todo [...]” (MIRANDA, Jorge, 2011, p.161). 

Prosseguindo, agora com Peter Häberle, podemos dizer que “[...] a constituição [...] é antes a expressão de um certo grau de desenvolvimento cultural, um modo de autorrepresentação próprio de um povo, espelho do seu legado cultural e fundamento da sua esperança e desejos” (2000, p.34). A Constituição recebe e transmite cultura. É por isso que Peter Häberle nos propõe uma teoria da Constituição como ciência da cultura. 

A Constituição de cada Estado será, assim, muito mais do que simplesmente um texto jurídico. Ou melhor, será um texto jurídico resultante do reflexo cultural da sociedade a que pertence, fazendo ela própria parte dessa cultura. 

De acordo com Jorge Miranda, “sendo a cultura uma das dimensões da vida comunitária e sendo a Constituição o estatuto jurídico do Estado na sua dupla face de comunidade e de poder, nunca a cultura [...] pode ficar fora da Constituição [...]. E, assim como se cuida da Constituição económica, também se cuida agora da Constituição cultural como conjunto de princípios e preceitos com relativa autonomia, respeitantes a matérias culturais. E não falta quem preconize que se fale, doravante, em Estado de cultura” (2011, p.164). 

Estas expressões, Constituição cultural e Estado de cultura, devem, no entanto, ser usadas com cautela (MIRANDA, Jorge, 2011, p.165). Pois não existe uma Constituição cultural independente da Constituição penal, da Constituição política, administrativa, ou económica. Ao contrário, deverão, todas elas, ser entendidas no âmbito da Constituição material como um todo sistemático. 

A acrescer ao que acabou de dizer-se, realçamos que a expressão, Estado de cultura, pode sugerir que a cultura está ao serviço do Estado, ou que o Estado está ao serviço de determinados grupos culturais, e, tais cenários, a verificarem-se, serão inadmissíveis num Estado de direito democrático. 

Esta nossa inquietação é corroborada por Vasco Pereira da Silva ao dizer: “[...] o que compete ao direito, é a garantia da liberdade e a proteção dos direitos fundamentais à cultura, de pessoas e de instituições, o que implica tanto a proibição de “tomar partido” em discussões e querelas do foro cultural, como tem de significar também o afastamento de quaisquer “tentações” (totalitárias) de “instrumentalização” ou de “programação” das realidades culturais”. É por isso que o mesmo autor defende que “[...] se a impossibilidade de encontrar uma noção de cultura é da ordem do “ser”, a impossibilidade da sua definição jurídica, numa democracia e num estado de direito, é também da ordem do “dever ser”” (2007, p.8).

Destarte, podemos concluir que, embora direito e cultura se encontrem, como vimos, naturalmente entranhados, não existe nem pode existir uma definição jurídica do conceito em apreço.

Apesar do que referimos até aqui, e sem pretendermos, sequer, criar aproximações a noções de cultura, seja em que área ou sentido for, temos vontade de terminar com uma visão, que encaramos como antropológica, de Guilherme d’Oliveira Martins, dizendo que “a cultura é, assim, considerada como um lugar de encontro entre o que recebemos das gerações que nos antecederam, o património construído e o património imaterial, os monumentos e as tradições, as pedras mortas e as pedras vivas, e o que criamos - o valor acrescentado que as novas gerações criam, a inovação, a experiência e a aprendizagem - lembrança, memória, inovação. A cultura é, assim, sementeira e construção, tradição e contemporaneidade, aprendizagem e transmissão de saberes, conhecimento e compreensão - receção e aspiração. Afinal a “destruição criadora” corresponde à dinâmica de criar, de substituir e de completar” (2008, p.172).