Atravessa a Place de la République a caminho de casa, depois de jantar com dois amigos, e nisto um sorridente rapaz de origem argelina mete conversa e sugere que passem a noite juntos e Édouard Louis finge que resiste ao convite, mas está enfeitiçado pela beleza do rapaz, e acaba por concordar e leva-o para casa e têm sexo. Porém quando se faz dia, ainda os dois em casa, planta-se a suspeita sobre o paradeiro de um telemóvel e começa uma troca de palavras que precipita equívocos e esse rapaz, de nome Reda, uns 30 anos de idade, é tomado pelo descontrolo, em espiral, e fica cego de raiva e tenta matar Édouard Louis e a seguir viola-o. Dia 25 de Dezembro de 2012.
É este episódio verídico, este tema quase tabu do homem violado, esta constatação de que o crime sexual também ocorre em contextos de consentimento, que está na origem de “Histoire de la Violence”, livro de 2016 cuja versão em inglês chegou agora às lojas com o título “History of Violence” (edição Harvill Secker/Penguin). Ao mesmo tempo, um terceiro livro de Édouard Louis acaba de sair em França, “Qui a Tué Mon Père”.
Note-se que a tradução é assinada pelo crítico americano Lorin Stein, afastado há alguns meses da direcção da revista literária “The Paris Review” sob a acusação de assédio sexual a funcionárias e escritoras.
Ao segundo livro, Édouard Louis estaria obrigado a superar-se para não desbaratar o fenómeno “Acabar com Eddy Belleguelle”, autobiografia com que se estreou em 2014, aos 22 anos, confissão de um homossexual oprimido pela pobreza e pelo preconceito numa aldeia do Norte de França, um êxito de vendas.
Eddy Belleguelle era o nome que ele já não queria, a ligação ao passado horroroso, a prova daquilo que outros fizeram dele – assim falou o autor – e por isso passou a assinar Édouard Louis, recriação de si mesmo, agora estabelecido em Paris e formado em ciências sociais, escritor e activista de esquerda, admirador de Pierre Bourdieu e amigo chegado de Didier Eribon, autor das famosas “Réflexions Sur la Question Gay” e, melhor ainda, de uma biografia de Michel Foucault (logo nas primeiras páginas ficamos a saber que o filósofo rejeitou o Paul-Michel de baptismo por razões afectivas...).
Em Portugal, “Acabar com Eddy Belleguelle” foi traduzido por António Guerreiro para a Fumo Editora, com direito a passagem do autor por Lisboa, ocasião afirmou a perspectiva marxista da obra, feita a ressalva: “O marxismo diz que as pessoas acabam por ter consciência de classe e não tenho a certeza de que isso aconteça. A armadilha da dominação e da violência é as vítimas terem vergonha e passarem a mentir para esconderem isso.”
Sem o encanto da estreia, “History of Violence” vem adensar aquela ambiciosa narração da violência, agora na cidade grande, ainda como autobiografia. É um relato urgente e sensacionalista (no bom sentido da palavra, e nem há outro), um conta-gotas de “suspense” do princípio ao fim.
Os crimes de 25 de Dezembro de 2012 não nos chegam apenas pelo narrador, ou sobretudo não é ele quem fala, mas a irmã, citada a contar ao marido aquilo que o protagonista lhe narrou a ela. A perspectiva cénica é tão óbvia que não espanta já ter havido uma adaptação teatral, por Thomas Ostermeier, no Schaubühne de Berlim.
Mais que um romance, temos um ensaio de ficção. O autor avança numa crítica ao Estado e à máquina biopolítica – à intrusão dos poderes na esfera íntima dos cidadãos, perspectiva colhida em Foucault. Édouard Louis tem até explicado em entrevistas que o título de duas obras célebres do filósofo francês, “Histoire de la Folie à L'âge Classique” e “História da Sexualidade”, serviram de inspiração ao seu próprio título.
Ele não se apresenta como a vítima da violação. Mais até, diz-se agredido por médicos e polícias que se apropriaram dos factos e os reconstruíram ao pretenderem exercer autoridade, e nem se proibiram de lhe dizer que a violação pode ser uma experiência de quase-morte e nem disfarçaram que não precisavam de saber detalhes do sucedido para logo classificarem Reda como mais um “árabe” criminoso, porque para estes polícias quem quer que viva para lá de Espanha é “árabe” – portugueses e gregos, se não os próprios espanhóis.
O autor repudia as “autoridades” e afasta-se do que seria um discurso óbvio e simpático. Procura no comportamento do violador alguma espécie de efeito da dominação, o mesmo exercício do primeiro romance em relação à família, descrita como opressora por viver ela própria tiranizada na pobreza. Assume alguma co-responsabilidade pela violação, o que é matéria para longo debate neste tempo em que abuso sexual, violação e consentimento são temas que nos agitam.
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