As pessoas que amamos morrem. Para as crianças, inventamos céus e propósitos, redesenhados no desconhecido; desenhamos nas estrelas o pó que sustenta os nossos alentos, a nossa esperança de que a morte possa ter algum sentido, na certeza de que não tem, porque nos assusta e arrebata, cava em nós o pior da tristeza e despeja-nos no mais fundo lodo emocional que imaginamos ser possível. Até à próxima morte.

Um dos flagelos dos tempos materializa-se numa única palavra que apavora: cancro. Quantas pessoas morrem de cancro? Muitas, demasiadas, são números que vamos lendo. Quando o cancro nos entra em casa, no nosso território afectivo, um familiar de quem gostamos mesmo (existem aqueles que toleramos apenas), uma amiga especial, recapitulamos a nossa existência, a finitude de tudo isto e contabilizamos, com maior ou menor alarido, o medo que a vida nos faz ter da morte.

Ao longo dos anos, morreram-me (formulação absurda e, apesar dessa dimensão, tão portuguesa) várias pessoas que eu amava. Amava por serem as minhas pessoas, por terem as suas porras, mas serem donas de um coração com a bondade que me parece urgente, para combater a fragilidade dos dias. Dos dias bons e dos dias maus.

Um amigo morreu inesperadamente aos 44 anos de idade, deixou dois filhos e foi uma das maiores lições da minha existência. Afinal, percebi eu então, isto pode ser a qualquer momento. Afinal, a morte não é uma coisa do futuro, país lá longe, incorrupto pela memória, pelos exercícios de imaginação. Morreram-me outras pessoas, familiares mais velhos que não esquecerei, a minha avó a dizer que estava na forma do costume; o meu avô a dizer que eu era a menina mais feia do mundo e arredores, sempre a brincar; o meu tio-avô, nem consigo descrever. As minhas tias. Pessoas com quem tive relações de amizade que não resultaram para a vida, tiveram o seu tempo e, apesar disso, a sua morte foi um abalo.

O fim é uma realidade que nos ultrapassa. O castigo é o cenário anterior, a doença, o arrastar de decisões médicas, palavras e terminologias desconhecidas, previsões fantasiosas, negações e pensamentos mágicos.

Com a idade, perder alguém é mais do que uma surpresa, é mais do que uma superação da idade adulta, é uma traição da vida e é o eco do que está para vir. Hoje podia escrever sobre a Ucrânia, sobre a licença aprovada em Espanha, para dias de menstruação dolorosos, sobre a paridade salarial, que demorará mais de cem anos a chegar, mas não posso. Hoje não perdi ninguém, amanhã poderei perder. E é sobre isto que consigo escrever.

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