A verdade é que o mundo não está louco. O mundo é louco. Pensar que já houve um tempo em que o mundo era menos louco será ingenuidade, a mesma ingenuidade que leva muitos a crer que o terrorismo é invenção recente — o que é recente é a capacidade de os terroristas, com um carro assassino ou um vídeo cruel, aterrorizarem o mundo inteiro em poucos minutos. Mas o acto em si, essa necessidade de ferir, matar, horrorizar em nome dum qualquer valor muito alto — isso não é novo.

Agora também temos de ver o outro lado: o mundo sempre foi habitado por uma imensidade de gente decente que, mal ou bem, melhor ou pior, sempre tentou viver a sua vida perante as investidas da História, sempre fez o que podia e o que não podia — enquanto alguns (ou talvez muitos em certas alturas) eram tomados por essa loucura febril e investiam a vida em guerras, morte e uma certa noção de honra muito bela e muito perigosa.

É isto importante? Sim, é. Porque muitos desses loucos que matam e se explodem ou atropelam gente inocente fazem-no porque desprezam o mundo e a vida desses mesmos inocentes. Sim, os loucos que matam estão a fazê-lo porque odeiam este mesmo mundo louco.

Os terroristas olham em volta e o que vêem é um mundo distante do passado perfeito que encontram num qualquer livro antigo. Para eles, o mundo é decadente e a liberdade dos outros é uma ofensa. Para eles, os valores modernos são todos para deitar fora. Para eles, a compaixão para com infiéis é fraqueza. Para eles, não matar uma criança infiel é fraqueza. Para eles, o conceito de humanidade é uma palermice moderna.

Há outros terroristas: os que lutam por uma pátria ou por um futuro perfeito. Todos põem o seu ideal acima da vida das suas vítimas. Neste caso, os terroristas têm na cabeça a visão bela de um deus forte e cruel. É uma ideia simples e arrebatadora. Esta crença justifica tudo e une-se às pulsões mais antigas que todos temos dentro de nós — a honra, o sangue, o sexo, a morte do inimigo. Vejam o que o ISIS faz nos seus territórios, entre escravas sexuais, execuções impiedosas e códigos de honra muito antigos...

Esta mistura entre ideais altíssimos, pulsões cruéis e desprezo pelo mundo é uma receita terrível. A cabeça destes loucos é já uma bomba-relógio muito antes de pegarem nas verdadeiras bombas-relógio. E, sim, estes que se matam a si próprios enquanto matam em nome de Deus são os mais perigosos de todos. O ideal que têm dentro da cabeça já ganhou uma força tal que nem a sobrevivência do próprio corpo interessa.

Julgo vislumbrar muita vaidade nos actos destes loucos. Sim, é vaidade essa certeza de que as suas crenças são mais importantes do que as pessoas concretas que atropelam na rua, mais importantes que as famílias normais que matam no aeroporto, mais importantes do que as meninas nigerianas que raptam na escola, mais importantes do que os homossexuais que atiram dum prédio, mais importante do que os jornalistas que decapitam frente às câmaras. E é também vaidade essa coragem assassina com que se matam numa cidade que desprezam. Sofrem da presunção dos puros, dos que matam e morrem por valores altíssimos enquanto negam a vida de carne e osso das pessoas que passam na rua. Uma vaidade, diga-se, que é alimentada pelo pequeno grupo que apoia o terrorista e o eleva à categoria de herói.

O mundo é uma imensidade de gente imperfeita que, no entanto, tem a suprema decência de não se fazer explodir no meio doutras pessoas. Celebremos essa banalidade, as vidas normais, a coragem de não morrer por valores tão altos que nos embriagam. Celebremos essa coragem banal e defendamo-la como pudermos. O mundo é louco, mas pior do que a loucura do mundo são os que matam por ódio a esse mundo. Cabe-nos viver — e defender a vida de todos os milhares de milhões de pessoas que, em todo o mundo, vivem sem matar.

Marco Neves é autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa.