Uma menina de dez anos, vítima de violação. O primeiro horror. Uma menina de dez anos vítima de violação que não está autorizada a abortar. O segundo horror. Isto acontece agora mesmo no Ohio, nos EUA. A reversão da lei que conferia o direito ao aborto permite situações destas.

Ouvi uma senhora que, muito despachada, adivinhava o futuro da criança e a atitude dos pais. Dizia ela: “a mãe vai com ela a outro estado e faz o aborto!” É verdade, foi o que a mãe decidiu fazer.

Mas eu, que tenho excesso de imaginação, consigo ver a mesma situação numa família de seis, numa casa sem condições e uma mãe que tem dois empregos e, talvez também por isso, os filhos passem demasiado tempo sozinhos. Não, esta mãe não tem dinheiro ou a possibilidade de arranjar uma solução para a sua filha. Vai ser mãe-avó da criança que nascer. Vai ter mais um encargo? Sim.

Na mesma via da imaginação também considero a hipótese da família ser terrivelmente conservadora, fincada numa religião qualquer que determina a vida de quem pode sem na verdade respeitar a vida de quem vive. Enfim, os cenários tenebrosos são fáceis de construir, mas o que será isso comparado com o dano emocional de todas estas meninas e raparigas nos estados mais puritanos e conservadores dos EUA? O que sentirão quando chegar a hora do parto e as amigas ficarem a brincar com as bonecas?

Como viverão o resto das suas vidas e criarão a sua identidade? Estas são perguntas para as quais ninguém tem resposta e para as quais a malta que é contra o aborto e a favor da vida deverá ter uma máxima qualquer, tipo: tudo se cria, a vida é santa. Santa uma ova, digo eu.

Proibir o aborto é prejudicar a vida e a saúde de muitas meninas e mulheres. Ninguém faz um aborto por gosto, senhores, faz-se por impossibilidade prática de gerar e criar uma criança, por falta de condições emocionais, físicas, financeiras. E faz-se porque a violação continua a ser um crime que acontece a todas as horas do dia.

Em 2021, a Organização Mundial de Saúde alertava para o facto de uma em cada três mulheres no mundo sofrer de violência física ou sexual. Já em Portugal, a cada cinco dias do passado mês de Junho, uma mulher foi morta. A pergunta é: quanto vale a vida de uma menina, de uma mulher? Aqui ou nos EUA vale demasiado pouco. Infelizmente, o mesmo é válido para o resto do mundo.