O meu avô Manuel cresceu em Atouguia da Baleia, ali quase a chegar a Peniche. Como compete ao ofício de avô, sempre nos contou muitas histórias sobre a terra.

Havia um comerciante que às vezes aparecia lá pela terra e que andava sempre a mudar de ramo. Num ano vendia as melhores meias inventadas em França, para no ano seguinte andar a espalhar as maravilhas dos cobertores do sul da Patagónia. Era uma espécie de Melquíades, sempre a impingir aos povos a mais recente maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia.

Ali em finais dos anos 50, a maravilha que o homem levou até à terra era uma caixa com um pedaço de vidro curvo chamada «televisor». O meu avô e um amigo lá foram ver a grande novidade.

Foram eles e foi a terra toda, que ficou de boca aberta a ver moverem-se figuras num pedaço de vidro. Ao ver o espanto de tanta gente, o meu avô virou-se para o amigo e sussurrou-lhe:

— Se comprássemos isto e vendêssemos bilhetes, se calhar tínhamos negócio...

A ideia entusiasmou-os. Compraram o aparelho, arranjaram uma sala e começaram a cobrar bilhetes de 10 tostões para assistir aos programas de televisão todas as noites. Um velho televisor numa sala, de ecrã pouco maior do que os ecrãs dos nossos computadores de hoje em dia — e uma assistência contente a assistir a notícias, teatros e outros que tais, em bancos corridos de sala de espectáculo improvisada. Era a Sala da Televisão: um espectáculo para toda a terra, todas as noites.

Um espectáculo, pois então. A certa altura, o meu avô começa a ter algum receio: talvez aparecesse por lá a Inspecção dos Espectáculos e teriam o caldo entornado. Decidiram passar o negócio para quem estava livre de chatices com inspecções: montaram a televisão num primeiro andar de uma casa junto à igreja e todo o lucro passou a ir para a paróquia. O negócio dos dois amigos desfez-se, mas a terra continuou a ver televisão em conjunto e ninguém se aborreceria com multas e outras perdas de tempo.

Se o meu avô se ocupou de pôr a televisão ao dispor da terra, a minha avó Gisela decidiu entrar dentro da caixa — participou num dos primeiros concursos da televisão portuguesa, apresentado por Artur Agostinho. Saiu de lá sem prémio por não ter sabido dizer que o bom presunto é o de Chaves. Na Sala da Televisão, ninguém se deve ter importado: era uma menina da terra em directo na TV!

Curiosamente, uns quilómetros ao lado, os meus dois outros futuros avós também tinham uma Sala da Televisão e, incrivelmente, também a cargo da paróquia. Haveria alguma coisa de sagrado naquela caixa?

Mas não foi para contar a ida da minha avó à televisão ou a estranha inclinação dos meus progenitores para pôr a televisão a render que decidi escrever esta crónica. Escrevo-a para contar o que se passou numa certa noite em que um filme que não passou na televisão quase provocou uma tragédia.

Uma certa noite, Maria Helena, uma das locutoras da RTP, anuncia para o dia seguinte a transmissão do filme português Rosa do Adro. A notícia correu depressa. O meu avô começou a perceber que, na noite seguinte, a terra inteira lá estaria, dez tostões na mão, para ver o filme.

Seria uma enchente de deitar a casa abaixo! Literalmente: o meu avô temia pelo chão de madeira daquele primeiro andar. Ele e o amigo lá andaram o dia todo a pôr estacas — o meu avô lembra-se, aliás, do número exacto: foram 27 estacas. Não, não seria nessa noite que a televisão seria o motivo duma tragédia nacional.

À hora marcada, lá estava a terra em peso. Sentados, em pé, pendurados na janela, todos esperavam pela Rosa do Adro, conversas animadas, chão a ranger.

Esperaram e esperaram — e nada.

Por fim, aparece Maria Helena a informar o país de que, por motivos imprevistos, não seria possível transmitir o filme.

A sala fez um «ohhh» pesado (mas as estacas aguentaram).

Ninguém arredou pé. Lá ficaram a ver o que deu nessa noite — o meu avô é que não se lembra o que foi. Imagino que estivesse mais preocupado com a solidez das estacas que aguentavam o peso da terra inteira a olhar para a televisão.

Deixemos a sala periclitante da televisão lá pelos finais dos anos 50. Fico só com uma pergunta: como serão as recordações de 2020 quando as contarmos aos netos e bisnetos daqui a umas décadas?

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Escreveu vários livros sobre a língua e o romance de aventuras A Baleia que Engoliu Um Espanhol.

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