A forma mais simples de descrever a Met Gala é com uma analogia que todos conhecem: trata-se de uma espécie de cerimónia dos Óscares, mas, em vez de cinema, o tema é a moda, e, em vez de se passar em Los Angeles, realiza-se em Nova Iorque, cidade onde se situa o Costume Institute, do Metropolitan Museum of Art. O evento, que é conhecido como "a joia da coroa social de Nova Iorque", angaria fundos para a exposição anual do Costume Institute que é a razão cívica de uma festa onde não entra qualquer um. A primeira gala aconteceu em 1948 e os bilhetes para o jantar custavam então 50 dólares — este ano, o valor foi de 35 mil dólares. A partir de 1973, a gala passou a ser organizada pela Vogue e, de 1995, pela carismática atual diretora da publicação, Anna Wintour.

Não é, assim, por acaso que o The New York Times define a Met Gala como a “festa de Anna Wintour”, nome incontornável em tudo o que possa significar “estar na moda” na cidade — e não só. Entre outras coisas, Anna Wintour escrutina pessoalmente a lista de convidados para o evento, e o facto de haver empresas a pagar 200 ou 300 mil dólares por mesa não lhes dá o direito de colocar lá sentados quem bem lhes apetecer. Anna supervisiona, Anna valida ou veta, Anna quer garantir que neste evento estão as pessoas certas.

Este ano, uma das pessoas “certas” a convidar foi Alexandria Ocasio-Cortez (também conhecida pelas iniciais AOC), a jovem congressista democrata eleita por Nova Iorque e vista, dentro e fora dos Estados Unidos, como um ícone do pensamento da esquerda contemporânea. Da igualdade de género e das questões raciais às políticas económicas e sociais, AOC tem trabalho feito. Foi, aliás, o trabalho e o pensamento em áreas da política económica e fiscal que a colocou retratada naquela que foi provavelmente a foto mais comentada da Met Gala de 2021, realizada esta segunda-feira, 13 de setembro. Kim Kardashian bem tentou disputar estes holofotes, mas, comparativamente, falhou.

Alexandria Ocasio-Cortez apresentou-se na mesma passadeira vermelha em que desfilaram milionários, celebridades e personagens de várias áreas que passaram no crivo da diretora da Vogue. Podia ter sido mais uma na passadeira, mas fez da sua estreia na gala dos ilustres membros da “coroa social” de Nova Iorque um momento de “alto e pára o baile”. Como? Usando a manifestação pública mais óbvia num evento de moda — o vestido. Um vestido branco, que seria apenas mais um vestido branco, não tivesse escrito na parte de trás em letras vermelhas “tax the rich” [taxem os ricos].

A protagonista da noite não contribuiu apenas com um vestido “político”. Em declarações na passadeira vermelha, relembrou que tinha trabalhado como empregada de mesa, que tinha desde essa altura uma grande admiração pela designer que lhe emprestou o vestido — Aurora James, “uma imigrante africana”, nas suas palavras, ainda que nascida em Toronto, no Canadá — e que esta era uma forma de prestar também homenagem ao seu esforço. A narrativa da miúda pobre que servia às mesas irritou uns quantos e encantou outros. E todos continuaram a falar de Alexandria e do vestido da Alexandria.

E foi aqui que começou verdadeiramente o baile que decorreu no sítio onde hoje tudo acaba por convergir: as redes sociais e as plataformas de comentários nos sites de notícias. Espaços onde tudo se reduz, na maior parte das vezes, a ou estamos a favor, ou estamos contra, ou somos uma nulidade social, uns coitados que ficam, como tantos gostam de dizer, em cima do muro, sem pular para um lado ou para o outro.

À luz desta estética, a congressista ou é um anjo corajoso que afronta os ricos no seu território ou é uma hipócrita sem coluna vertebral que só quer fazer parte do mundo daqueles que critica. Talvez valha a pena partilhar algumas premissas menos radicais:

— Uma congressista pode propor mais impostos sobre os ricos e ir a eventos em que convive com esses mesmos ricos.

— Uma congressista pode propor taxas sobre os ricos no Congresso e levar escrito isso mesmo a uma festa de ricos como statement.

— Há ricos, dentro e fora do evento, que concordam que os ricos paguem mais impostos (veja-se o mais rico dos ricos, Warren Buffett).

— Os ricos, dentro e fora do evento, dificilmente ficarão persuadidos pela ideia de pagar mais impostos sobre o que ganham por causa de um vestido.

— O que muda a desigualdade entre os muito ricos e todo o resto da sociedade, numa proporção de 1% para 99%, são as leis que efetivamente possam fazer os ricos pagar mais impostos.

Alexandria Ocasio-Cortez sabia ao que ia, aliás sentiu necessidade de justificar a presença no evento através da sua conta de Instagram, em que escreveu que é normal os representantes eleitos pelo povo irem a eventos como a Met Gala no âmbito das suas funções de supervisão da vida cultural da cidade. Só ela saberá se decidiu estar presente por ativismo ou se decidiu fazer ativismo para justificar a presença — mas, na verdade, pouco importa.

Importa que colocou o tema dos impostos nas "bocas do mundo"? Importa, mas convém não sermos ingénuos. O que "as bocas do mundo" estiveram a discutir não foi uma discussão pública alargada sobre a forma de taxar os ricos, nomeadamente nos Estados Unidos, terra dos milionários instantâneos, e ainda por cima exatamente nos mesmos dias em que o Congresso dos Estados Unidos discute o efetivo aumento da carga fiscal sobre os rendimentos mais elevados. Discutiu-se o caráter de uma congressista a propósito do vestido que levou a uma gala, discutiu-se se a "campanha de publicidade", como alguns lhe chamaram, tinha sido eficaz ou não e, claro, pelo meio houve pessoas a insultarem-se umas às outras por estarem a favor ou contra.

Só que isso diz mais sobre quem comenta do que sobre a protagonista da história.

Sentar-se à mesa dos ricos com um vestido outdoor sobre o dinheiro que deviam estar a pagar para um mundo mais justo não é a mesma coisa que chamar milionários a reuniões no Congresso para, em fato civil, discorrer sobre as propostas de legislação nesse sentido. A diferença é que em apenas um destes locais se podem efetivamente mudar as regras — e não é enquanto provam acepipes e comentam as excentricidades mundanas.

As regras estão, tentativamente, a ser mudadas no Congresso, onde os democratas levaram nesta mesma semana uma proposta que visa aumentar os impostos sobre quem tem maiores rendimentos, sobre os lucros das empresas, as mais valias com capital e imobiliário. E, já agora, Alexandria Ocasio-Cortez faz parte do grupo que as está a tentar mudar.

Se os democratas conseguirem aprovar a proposta, as empresas vão pagar mais sobre os lucros — 26,5% versus os 21% herdados da administração Trump —, mas continuarão a ter um nível fiscal abaixo de 2017. Os mais ricos irão pagar mais sobre os rendimentos declarados: a proposta é de uma taxa de 39,6%, sendo a atual de 37%, para rendimentos acima dos 400 mil dólares/ano no caso de pessoas individuais, e 450 mil para casais. As medidas partem do Ways and Means Committee — é irresistível escrever na fórmula original o que podemos traduzir para Comité dos Recursos — e visam encontrar financiamento para o plano de investimento de 3,5 biliões de dólares no país.

Entre a narrativa da coragem de afrontar o sistema e a de ser hipócrita com o sistema, há a realidade concreta da política, da sociedade e da economia num país em que o 1% mais rico tem ficado progressivamente mais rico e pago cada vez menos impostos, e num mundo em que as desigualdades são a grande causa de fratura social e, consequentemente, uma ameaça maior à democracia.

Discutir a bondade, a justiça, a eficácia e até as alternativas das propostas exige bem mais do que um emoji ou um comentário afoito perante uma fotografia na passadeira vermelha. Além das políticas concretas, o que pode mudar a forma como vivemos é ter mais pessoas interessadas nesta discussão e em saber mais sobre a forma como cada sociedade paga as suas contas, apoia os que mais precisam e planeia o futuro dos que virão a seguir. É muito menos divertido do que discutir vestidos e o caráter das personalidades públicas, mas pode efetivamente mudar a forma como vivemos.

Assumir uma posição política ou social através do que vestimos não é exclusivo de quem desfila na passadeira vermelha — senão, como se explicaria o fascínio por T-shirts com frases que nos permitem dizer ao mundo o que pensamos e que causas defendemos? O problema não é o meio ser a mensagem; o problema é quando se fica só por aí, sem traduzir a mensagem em algo concreto, nomeadamente quando se tem visibilidade ou capacidade de atuação efetiva.

Mais que um vestido, Ocasio-Cortez vestiu-se de uma causa (não foi a única, Cara Delevigne, por exemplo, apontou o vestido ao patriarcado). As causas são a melhor manifestação de “personalidade” nos dias que correm, não há estilista que possa competir com isso.  O resultado foi exatamente aquele que Anna Wintour espera de qualquer convidado que inclua na lista. Espetacularidade. E, no caso de Alexandria Ocasio-Cortez, esperou dela o que ela lhe deu — uma razão para até pessoas que nunca prestariam atenção à Met Gala (como eu) gastarem tempo a falar do evento, quando mais não seja por discutirem esse “detalhe” que foi o vestido de Ocasio-Cortez.

Desculpa lá, Anna, por apesar disso estar a maçar as pessoas com um fait-divers fiscal.

Ainda  sobre este tema, vale a leitura:

  • Este artigo no The Verge sobre o novo programa da cadeia de televisão americana CBS. Chama-se "The Activist" e parece que muitos, incluindo ativistas reais, não ficaram "inspirados" por um programa que acusam de "glamorizar" a publicação em redes sociais com sendo efetiva ação em defesa de uma causa.
  • O site Visual Capitalist dá uma preciosa ajuda a mostrar em imagens conceitos e realidades complexas. Neste caso, dá uma ajuda a mostrar a relação entre os impostos e o PIB nos países da OCDE.

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