1. Os democratas ainda não têm o seu anti-Trump. Ou têm mas ainda não sabem. Andam à procura do futuro, e boa parte do mundo torce para que encontrem. Bernie Sanders, 77 anos, continua a ser um caminho, mas demasiado socialista para uma parte dos democratas, além de outsider. Foi neste vácuo que Beto O’Rourke apareceu, e se tornou a estrela das eleições intercalares, as primeiras com Trump no poder.

Para quem não seguiu a campanha: Beto não é latino apesar do nome. Chama-se Robert, vem de uma família de origem irlandesa, com vários políticos. Mas é de El Paso, e isso significa não apenas ser texano, como ser da fronteira, literalmente a passos de Ciudad Juárez. Ou seja, saber do que a fronteira acumula há décadas, dos explorados, abandonados e mortos do lado mexicano, dos mexicanos e centro-americanos que morrem clandestinos, em fuga à pobreza violenta nos seus lugares de origem, tantas vezes gerada pelos EUA.

Beto é de El Paso e fez-se político em El Paso (depois de várias deambulações, incluindo estudar literatura em Columbia e ter uma banda punk). Trabalhou anos na câmara local. Fala de casa quando diz que El Paso é a Ellis Island da América Latina (portanto, o equivalente texano da ilha novaiorquina onde aportaram milhões de imigrantes vindos pelo Atlântico). Assim dito, isto encaixa na narrativa épica de que os EUA tanto gostam, e Beto refresca-a de bom grado, progressista mas patriota: “Somos um grande povo”, disse no seu discurso de terça-feira, depois da contagem dos votos. Ele sabe dos bastidores dessa narrativa, tem diminutivo latino, é fluente em espanhol, foi moldado no caldo da fronteira. E tudo isso o terá ajudado a ser o democrata decidido a conquistar o Texas, gigante republicano há gerações. Tão ambicioso e carismático que se propôs fazer isso sem grandes financiadores, apenas com pequenos donativos, batendo a milhares de portas, correndo cada pedaço do estado, falando com as pessoas. Enquanto o seu rival republicano Ted Cruz tinha uma máquina financiada por poderosos, alicerçada em décadas de poder. Há derrotas que são vitórias, e vice-versa. A derrota de Beto O’Rourke terça-feira (48,3%) pareceu ser só o começo da sua vitória. Porque perdeu por um fio, porque ressuscitou o partido no Texas, porque recolheu milhões de dólares de dezenas de milhares de contribuidores, porque galvanizou milhões de pessoas em campanha, e se tornou uma figura nacional, portanto, global. O tipo de celebridade que “milhares de pessoas vêem a comer um hamburger (46.000 views no Facebook), a andar de skate num parque de estacionamento (161.000 views), a tratar da lavandaria (44.000 views) ou a responder a perguntas sobre os jogadores da NFL [Liga de Futebol Americano] que se ajoelham durante o hino nacional (dezenas de milhões de views)”, resumiu a revista “Rolling Stone”. A meio da campanha já tinha equipas de documentários a seguirem-no, drones a filmarem-no, Beyoncé vestiu uma t-shirt Beto O’Rourke.

Beto é, então, o democrata que também usa armas usadas por Trump, como as redes sociais, e as captura para a ala esquerda do Partido Democrata, propondo ao mesmo tempo controle da posse de armas, um sistema de saúde progressista, despenalização do consumo de marijuana e uma visão positiva da imigração.

Esta campanha eleitoral foi marcada pela subida da caravana de migrantes das Honduras e da Guatemala, que partiram da América Central a 13 de Outubro. São alguns milhares de pobres, lentamente subindo até à Cidade do México, correndo todos os perigos, raptos por cartéis, deportação. Mas Trump transformou-os na invasão dos marcianos, um perigo para a segurança nacional, e mandou milhares de soldados para a fronteira, apesar de a caravana estar a dois mil quilómetros. Beto O’ Rourke fez campanha invertendo esta tónica xenófoba, recolocando a imigração como essência positiva da América. Conseguiu combinar o épico patriótico com a agenda progressista, e ainda não fez 50 anos. Assim, muitos democratas viram nele o líder que Bernie Sanders não pode ser. Talvez, enfim, um novo Kennedy. O próprio Sanders saudou quer a eficácia anti-sistema dos fundos de campanha, quer a forma como O’ Rourke envolveu muita gente sem activismo anterior, incluindo os jovens. Perdeu a corrida para o Senado, mas ganhou muitos pontos para 2020.

2. Só terem sido tantas candidatas já seria um ganho, mas muitas ainda foram eleitas. Esta foi a eleição intercalar das mulheres nos EUA. A primeira depois de Trump ser eleito, e a primeira da era #metoo, encorajamentos para muitas decidirem envolver-se como nunca. Eram 237 mulheres a correr para a Câmara dos Representantes, 23 para o Senado, 16 para governos estaduais. E 107 foram eleitas. Só na câmara, são 84 democratas e 14 republicanas (incrível a diferença, não?). Muitas são estreantes, e muitas não-brancas, incluindo as duas primeiras mulheres indígenas americanas no Congresso: Deb Haaland, do Novo México, e Sharice Davids, do Kansas (que além disso será a primeira pessoa LGBT a representar o Kansas). Novidade serão também Rashida Tlaib, pelo Michigan, e Ilhan Omar, pelo Minnesota: primeiras muçulmanas no Congresso.

A revista “New Yorker” destaca ainda algumas outras vitórias femininas. Em Oklahoma, a estreante Kendra Horn tornou-se a primeira democrata eleita no seu distrito em 44 anos. No Iowa, a jovem Abby Finkenauer derrotou um republicano eleito pelos ultra-conservadores do Tea Party. No Illinois, Lauren Underwood, uma negra, derrotou seis homens brancos nas primárias do Partido Democrata e depois um republicano, numa região branca e republicana. O seu foco foi a importância de um serviço público de saúde.

E, claro, a grande batalhadora desta eleição, até à hora em que escrevo, é a negra Stacey Abrams, candidata a governadora da Geórgia. Se for eleita, será a primeira governadora negra dos Estados Unidos. Digo se, porque Abrams está a pedir a contagem dos votos até à última, e responsabiliza o ocupante do cargo, Brian Kemp, recandidato, de ter clamado vitória antes de todo o tipo de votos serem contemplados, e de aproveitar o poder para interferir na eleição. Kemp está com 50,3. Se descer abaixo de 50, vão outra vez a votos. Uma nova onda de activistas e donativos está a apoiar Abrams.

Na Flórida, o negro Andrew Gillum também perdeu por um fio para o republicano Ron DeSantis, um adversário que o associou indirectamente a um macaco, termo tradicionalmente usado para negros na linguagem racista (“The last thing we should do would be to monkey this up”, disse DeSantis na televisão, referindo-se à corrida na Flórida).

3. Voltei há pouco mais de duas semanas dos EUA. A campanha estava por toda a parte, nas paredes, nas ruas, nos carros, nas bicicletas, até na invasão das trotinetas. Fui jantar a casa de uma família que tinha corrido a levar um amigo ao aeroporto porque acabava de lhe morrer uma pessoa próxima, noutro país. Mas tinham parado antes para que ele pudesse deixar o seu voto, já que não voltaria a tempo da eleição. E fui seguindo como amigos de amigos que nunca se tinham envolvido em campanhas deram tempo do seu dia todos os dias, a panfletar, telefonar, apelar, reunir, planear, levar gente a votar. Muitas mulheres, muitos jovens. Se muito parece regredir, também muita gente parece levar mais a sério do que nunca o voto.