No calor das emoções do fim do jogo entre Portugal e Marrocos, no Campeonato do Mundo do Qatar (2022), uma criança de nove anos com uma camisola da selecção marroquina preferiu duas frases que se tornaram virais: “Portugal, o aeroporto é por ali. O Ronaldo deve estar a chorar no seu carro”.

A sua linguagem não verbal revela pouca empatia pela equipa perdedora e por aquele que é considerado um dos melhores jogadores de sempre. Revela até algum desdém e regozijo no olhar. O que aconteceu nos dias seguintes, nas redes sociais, nomeadamente com adultos a insultarem uma criança de nove anos de forma feroz, ignorando a idade e o contexto, deve fazer-nos pensar sobre a forma como nos estamos a relacionar, sobretudo através dos ecrãs. Incluindo a mãe da criança, que sentiu necessidade de vir pedir desculpa em nome da filha, usando as mesmas redes sociais, e apelando ao fim dos ataques e explicando que esta estava a ficar perturbada com tudo o que lia sobre si. Também isto nos deve fazer pensar, ainda mais, sobre a exposição das crianças ao mundo online, a forma correta de o fazer em cada idade e que tipo de acompanhamento deve existir por parte dos pais. 

Onde está a nossa empatia, por quem perde? O que dizemos a quem ganha? No futebol, há sempre equipas que ganham, que perdem, que empatam – E os adultos, o que dizem, o que comentam? Que modelo estamos a ser para as nossas crianças?

Todas as semanas vemos jornalistas a fazerem entrevistas à saída dos estádios a adeptos fervorosos, umas vezes felizes, outras vezes mais zangados ou até tristes. Cada um dá a sua opinião. Cada um foca-se no que mais lhe tocou ou interessa do jogo. Todos sabem que estão a falar para um ecrã. Por isso, sabem da possibilidade imediata de partilha de conteúdos.

Será que já estamos dessensibilizados quanto ao discurso negativo ou até de ódio no mundo online? Será já banal comentar uma vitória, falando da derrota e da desgraça alheia?

Se assim é, estamos a perder uma das competências essenciais para crescermos de forma saudável: a empatia. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. A capacidade de nos colocarmos nas chuteiras de cada jogador, neste caso, da equipa portuguesa. A capacidade de nos colocarmos nas chuteiras do Ronaldo. E assim, conseguir sentir a tristeza, a frustração, o desalento, pela perda, e pela não progressão em mais uma fase do campeonato.

Quando a nossa equipa ganha o que dizer? Parabéns! Agradecer o esforço. E uma palavra de apreço e respeito à outra equipa derrotada. Não será isto, a que todos chamamos de “boa educação e bons modos”?

No mundo online é exactamente o mesmo, e chama-se: Netiqueta. Sim, a forma como comunicamos online é igualmente importante e tem um factor de destaque, porque o que se diz fica registado, podemos visualizar sempre e partilhar de forma continua.

A tecnologia veio facilitar uma comunicação negativa e a proliferação do bullying? Sim, porquê? Pela facilidade de se chegar ao outro, pela rapidez da passagem da mensagem e pela ausência de contacto ocular e da presença física do outro.

A comunicação não verbal, na presença do outro, dá-nos informação preciosa e imediata do impacto das nossas palavras e da nossa postura. Dá-nos feedback. No mundo online, esses dados perdem-se. O nosso cérebro fica centrado só no que queremos e estamos a dizer, e não tem esse feedback. Perde-se uma parte da comunicação.

O acesso e uso da tecnologia desde a infância é uma realidade que tem benefícios e riscos. É importante nós, adultos, sermos um modelo educacional presencial e online. O shareting é a partilha exagerada de conteúdos dos filhos online. Os estudos com crianças e jovens reportam que o shareting existe e que tem impactos negativos para a sua saúde mental.

Os pais da menina de nove anos com a camisola da selecção marroquina, no calor da vitória, expuseram-na à critica de todos. À critica dos fãs do Ronaldo.

Esta situação é só mais um exemplo de comunicação negativa, de ambos os lados, que serve para reflectirmos como queremos gerir a tecnologia nas nossas vidas. É importante pensarmos em algumas estratégias que nos possibilitam uma gestão saudável do uso do mundo online.

A exposição de crianças e jovens a ecrãs deve ter em conta a sua idade, o seu nível de desenvolvimento e o seu nível de literacia digital. Isto implica a introdução de regras e limites quanto ao número de horas e ao tipo de conteúdos. A metáfora poderá ser: definir bem as balizas do uso do mundo online, para um jogo saudável!

O uso partilhado de ecrãs entre pais e filhos é uma estratégia útil, pois permite não só a comunicação, bem como um maior conhecimento dos interesses e preferências de cada um, que poderá resultar em maior proximidade e num relacionamento com mais emoções positivas.

A netiqueta faz-se pelo modelo e pela partilha. A introdução da tecnologia a uma criança pode ser um caminho em que, ao longo do tempo, se vai passando de maior supervisão parental, para a responsabilização e confiança na sua autonomia, para que haja uma auto-regulação saudável do seu comportamento online.

A visualização conjunta de conteúdos online permite, ainda, o desenvolvimento do juízo critico. Todos, pais e filhos, podem em conjunto olhar para as frases da menina de 9 anos com uma camisola da selecção marroquina e para os comentários proferidos online, fazer uma análise e retirar daí as suas conclusões. O que fariam? O que diriam? Que netiqueta querem todos seguir? Fica o desafio!

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Ivone Patrão é Psicóloga Clínica e da Saúde, docente Ispa- Instituto Universitário e coordenadora do projecto #geração cordão - comportamentos e dependências online.

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