Primeiro, o facto: no dia 1 de Julho, o Supremo Tribunal Federal, ao resolver a disputa entre Trump e o Estado quanto à sua responsabilidade pelo motim de 6 de Janeiro de 2021 (Trump vs USA), cria uma nova doutrina constitucional em que os presidentes norte-americanos passam a ter imunidade absoluta em actos oficiais e imunidade presumida em actos não oficiais.

O primeiro resultado desta decisão surpreendente é deixar para depois da eleição presidencial de Novembro o julgamento da acusação de conspiração para subverter o resultado da eleição de 2020. O processo volta agora ao tribunal inferior, que decidirá se as ações de Trump foram tomadas em carácter oficial ou privado. O ex-presidente enfrenta três acusações de conspiração e uma de obstrução de justiça, todas relacionadas aos seus esforços para se manter na presidência.

O voto foi subscrito pelos seis juízes conservadores (três nomeados por Trump), derrotando os três juízes liberais.

Segundo, uma breve explicação do sistema judicial. O Supremo Tribunal Federal é o equivalente aos nossos Tribunal Constitucional e Supremo Tribunal de Justiça fundidos num só. Enquanto no sistema português estes dois tribunais julgam os casos que lhes chegam segundo um certo número de regras, o norte-americano escolhe os casos que lhe são apresentados, a seu critério. Quer dizer, pode recusar decidir sobre um caso, o que significa que não o considera relevante constitucionalmente. O STF não muda a Constituição, antes esclarece como ela deve ser interpretada. Essa interpretação cria um precedente a ser seguido doravante, o que na prática corresponde a uma alteração constitucional que não pode ser rebatida pelos outros dois poderes, o executivo e o parlamentar.

Terceiro, o que significa esta decisão. Tudo o que o Presidente decidir enquanto Presidente — os actos ou acções oficiais — tem “imunidade absoluta”, e nem sequer pode ser sujeito a contestação em tribunal. O que o Presidente decidir a título não oficial pode ser contestado, mas a decisão se é um acto oficial ou não oficial caberá ao próprio Tribunal Constitucional. Os tribunais inferiores não o poderão fazer. Isto significa, na prática, que o Presidente está acima da lei, tem os poderes que tinham os reis absolutos no “ancien régime” e que têm os ditadores nos regimes contemporâneos.

Não há precedente histórico ou jurídico para esta decisão. A Declaração da Independência de 1776 dizia expressamente que as colónias não queriam ser governadas por um rei e a Constituição de 1788 não tem nada sobre imunidade presidencial. Apenas diz que ele pode ser destituído em caso de “grandes crimes e contravenções”, sem especificar quais possam ser nem quem os define como tal. A imunidade presidencial nunca precisou de ser definida, porque se presumiu na altura que não precisava de ser posta em questão.

Esta ausência na Constituição foi o que permitiu que agora a maioria conservadora do Supremo viesse definir a questão. A juíza liberal Sonia Sotomayor disse na sua dissensão (desacordo com a decisão obtida por maioria) que “a decisão de conceder imunidade criminal a ex-presidentes remodela a instituição da presidência, e faz troça do princípio, fundamental para a nossa Constituição e sistema de governo, de que nenhum homem está acima da lei”.

Jennifer Rubin, do “The Washington Post”, exemplificou alguns resultados desta nova ordem: “A noção de que qualquer ação ilegal possa ser envolta no manto da ‘conduta oficial’ deveria alarmar todos os americanos. Como salienta a dissidência, se, como chefe das Forças Armadas, Trump ordenasse ao Seal Team Six que assassinasse adversários políticos, o que o impediria? Dado que o próximo presidente poderá ser um criminoso já condenado, a perspectiva de um presidente imperial com um passe para sair da prisão deveria ser assustadora. E, para piorar, nenhum tribunal (excepto o STF) pode investigar os motivos do presidente para determinar se agiu a título oficial”.

Para já, a decisão afecta todos os processos em que Trump está envolvido, sobretudo o que se refere à tentativa de subverter a eleição de 2020. Como escreveu o juiz John Roberts, “o Presidente não pode ser indiciado por exercer os seus poderes constitucionais básicos e é-lhe devido, no mínimo, uma imunidade presumível contra acusações sobre esses poderes.” Fica assim inutilizada também a acusação de que ele usou o Ministério da Justiça para confirmar que teria havido fraude eleitoral ou que tentou dar poderes a um colégio eleitoral paralelo para o declarar vencedor da eleição.

O Tribunal também decidiu, especificamente, que na distinção entre actos oficiais e não oficiais nenhum tribunal pode sequer levar em consideração as “intenções” do Presidente. É surreal, mas o Ministério Público não pode usar os actos do Presidente para dizer o que é oficial ou não oficial.

Finalmente, o historial e os fundamentos desta decisão fatal para a democracia norte-americana.

Há anos que os ultra-conservadores, religiosos, autoritaristas e supremacistas brancos têm vindo a criar as condições para ler os princípios da Constituição à luz de uma doutrina anti-liberal — ou anti-moderna, como lhe quisermos chamar. Trump não é um teórico, mas essas doutrinas servem muito bem a sua vontade narcisista patológica de exercer o poder ditatorialmente; e os ultra-conservadores vêem em Trump a pessoa ideal para avançar com a sua agenda.

Como ninguém esperava que Trump ganhasse a eleição de 2016, estas forças não estavam organizadas e foram aproveitando as oportunidades que ele lhes dava — como a nomeação de 274 juízes, inclusive os três do Supremo. Conseguiram uma grande vitória como a abolição da lei federal sobre a interrupção voluntária da gravidez (que passa para o critério dos Estados) e avanços na fiscalidade favorável aos mais ricos, na repressão à imigração, no esvaziamento dos já fracos apoios à saúde e na redução do poder das agências do meio ambiente. Durante esta presidência de Biden usaram o Congresso para travar legislação sobre os mesmos temas.

Mas agora essas forças estão preparadas. Há um documento de 850 páginas, “Projecto 2025”, produzido pela Heritage Foundation, um grupo de associações ultra-conservadoras, que define em pormenor aquilo a que o seu presidente, Kevin Roberts define como “a segunda revolução americana.”

Numa entrevista no webcast de Steve Bannon, o ex-assessor de Trump que faz a ligação entre a ultra-direita americana e Viktor Orbán (mais sobre isto a seguir), Roberts disse descaradamente: ”Vamos ganhar. Estamos no processo de reconquistar este país. (…) A decisão do Supremo Tribunal é vital por muitas razões.(…) A esquerda radical tomou conta das nossas instituições mas a nossa revolução será sem sangue, se essa esquerda o permitir.”

Note-se o pormenor assustador de atirar a hipótese de “sangue” para a “esquerda radical”, sendo que de facto não existe tal esquerda, pelo menos com uma massa crítica que se veja.

O Projecto 2025 esmiuça detalhadamente as acções a empreender por Trump e os seus secretários e assessores, incluindo uma limpeza completa do aparelho de Estado, substituindo os técnicos, tradicionalmente apolíticos, por fiéis ao trumpismo, abolindo as agências reguladoras do ambiente, da saúde e de tudo o que impeça a “cristianização” do governo, isto é, a defesa activa dos “valores tradicionais da família” branca e religiosa.

E aqui entra Viktor Orbán.

Em 2023 , a Heritage Foundation associou-se formalmente com o Instituto Danúbio, um “think tank” fundado e financiado pelo Governo húngaro. Este instituto tem vindo a financiar figuras da extrema-direita norte-americana, que definem o regime de Orbán como o modelo a seguir.

Orbán, como sabemos, tem sido claro na sua vontade de derrubar o conceito ocidental de democracia e substituí-lo por aquilo a que chama de “democracia iliberal” ou “democracia cristã”. A ideia é substituir o multiculturalismo por uma monocultura cristã, estancar as migrações que a colocam em perigo e rejeitar os “modelos variáveis de família” a favor do “modelo cristão de família”.

O Projecto 2025 diz exactamente a mesma coisa: “os Estados Unidos devem restaurar a família como o centro da vida americana e proteger as nossas crianças; desmontar o Estado administrativo e voltar à auto-governação do povo americano; defender a soberania nacional, as fronteiras, e precaver-se contra as ameaças globais; assegurar os nossos direitos individuais para viver livremente — aquilo que a nossa Constituição chama de as Bênçãos da Liberdade”.

Para quem possa ter dúvidas, o documento explica que, entre outras coisas, a tal defesa da família implica eliminar tudo o que possa ser associado à orientação sexual ou identidade de género, aborto e direitos reprodutivos. Qualquer referência a transgenia é pornografia e deve ser banida.

Voltando ao específico inicial, a decisão do Supremo Tribunal, é claro que ela se aplica ao actual Presidente, Biden, e a todos os presidentes que se lhe seguirem. Mas também é claro que Biden nada fará para exercer esse poder de realeza absoluta nos meses que ainda lhe restam na presidência e que o mais provável — altamente provável, segundo todas as sondagens — é que Trump venha a usar esses poderes logo a 1 de Janeiro de 2025. Terá um guião para seguir e pessoas preparadas para o apoiarem nessa tarefa.

Trump já disse que vai “ser ditador no primeiro dia”, mas o que tudo indica é que será ditador “a partir do primeiro dia”, por cinco anos. Isto, se houver verdadeiras eleições em 2030…

Poderia alegar-se que os problemas dos americanos só a eles interessam, que os resolvam; mas, como todo o mundo sabe, o destino dos Estados Unidos tem uma influência directa no destino desse mundo — do qual nós aqui, neste pequeno jardim, também fazemos parte.