Não se pede aos ex-inquilinos da Casa Branca que, depois de deixarem aquela mansão no número 1600 da Pennsylvania Avenue mantenham intacta a capacidade para atrair a atenção do mundo. Com os Obama há esse privilégio. Michelle impôs-se há dois anos nos tops de livros elogiados e vendidos pelo mundo com Becoming. Agora, Barack supera as melhores expectativas com as 850 páginas de Uma Terra Prometida, tradução para portuguesa do original A Promised Land.

Resulta uma evidência: Barack Obama é um escritor com prosa esplêndida, atraente, rica em detalhes. Os discursos naqueles oito anos em que foi presidente e a vitalidade dos improvisos já sugeriam esse talento antecipado num livro anterior, A Origem dos Meus sonhos, tradução de Dreams from my father (1995), primeira introspeção em que Obama descreveu as origens familiares americanas e africanas e a luta identitária de um jovem mestiço nascido no Havaii e que ali foi criança e adolescente.

As Memórias de ex-líderes políticos traduzem muitas vezes o desejo de (re)escrever a história. Obama não vai por aí. Prefere, numa opção arriscada, partilhar connosco, em modo filosófico, as dúvidas e até os erros que a presidência Obama teve.

Neste Uma Terra Prometida, Obama conta-nos com minúcia o percurso que fez desde a entrada na política, em 1989, em Chicago e o encontro com a solidez de Michelle sempre companheira. Admite que a entrada na política faz parte da procura da identidade. Explica como ganhou consciência política com os movimentos pelos direitos civis e contra a guerra, nos anos 60.  Cita os heróis políticos: Nelson Mandela, Mahatma Gandhi e Martin Luther King.

Este primeiro volume termina no 1º de maio de 2011 quando, após a “decisão mais difícil de toda a presidência” um comando de tropas de elite dos Navy Seals abateu Bin Laden. Tinham então passado dois anos e quatro meses do primeiro mandato. 

Temos minuciosas discussões sobre a tomada de decisões políticas e revelações sobre a vida na Casa Branca. Em todo o relato sobressai a modéstia e a humildade deste homem com cabeça sempre racional, realista.

Sentimos vibração com o enquadramento do histórico do Cairo, em junho de 2009. É o discurso em que o presidente dos Estados Unidos da América se dirige ao povo árabe e muçulmano com a proposta de um novo começo para ser conseguida uma boa relação. É o discurso em que Obama declara o desejo de negociar com o Irão e em que considera “intolerável” o sofrimento dos palestinianos. É um discurso de Nobel da Paz, mas a esperança ficou frustrada ainda no tempo da presidência Obama. Conseguiu um acordo (que, depois, Trump quis desfazer e que agora pode ser relançado) com o Irão. Mas Obama fracassou na procura de futuro digno para a Palestina.

Obama escreve sempre a interrogar-se sobre o que é essencial. Poderá ser indulgente com ele em algum relato, mas, sempre modesto, nunca puxa glórias para ele. Até quando questiona a pertinência da atribuição do Nobel da Paz (“for what?”). 

Conta-nos que tinha o costume de ler as cartas que cidadãos enviam ao Presidente. É correspondência que normalmente, pelo mundo, fica pelos assessores dos governantes. Obama quis ler o máximo possível.

Muito deste livro é dedicado ao modo como lidou com a demonização que os republicanos fizeram da presidência Obama e que se traduziu no boicote do essencial plano Obamacare de garantia de saúde para todos, em especial aqueles 20 milhões desfavorecidos sem qualquer acesso. Obama enfatiza as poderosas barreiras que o sistema constitucional dos Estados Unidos opõe ao exercício da função presidencial, designadamente quando o Senado é adverso – vale como recordatória a Biden, que conhece bem a história, caso os democratas não conquistem os dois lugares ainda em aberto na crucial eleição na Georgia.

A questão racial é tocada mas sem o mergulho esperado na tão complexa questão. Fica evidente o pragmatismo de Obama, o candidato que logo na primeira eleição quis evitar tensão com a população branca. Tal como foi sempre prudente na crítica a excessos de forças de segurança. É um dos capítulos em que se sente Obama a abdicar da responsabilidade acrescida de primeiro presidente mestiço. Justifica-se com o argumento de que ao longo da história americana os políticos atiraram quase sempre para os negros e mestiços a causa da frustração dos brancos. É o lado de estratego prudente de Barack Obama, o reformista. Em muitos domínios mais conservador do que progressista.

Seguimos a conversão do idealista em pragmático. Este livro ajuda a compreender o que gera uma sensação de “menos que o ambicionado” no final da presidência Obama. Com o grande crédito da fulgurante recuperação da crise económica de 2008.

Obama tem humor a contar impressões e peripécias sobre muitas das personagens com quem se encontrou. 

Este Uma Terra Prometida também nos dá a compreender como de facto funciona aquela mansão presidencial que o cinema e séries televisivas tanto têm romanceado. Neste livro, o homem que foi presidente conta-nos, desde a história da Casa Branca às histórias dos funcionários de mais baixo salário que fazem funcionar a presidência. Também fala dos encontros com famosos que vão de Stevie Wonder a B.B. King, de Meryl Streep a Scarlett Johansson, passando por Sean Penn, de como Bob Dylan, à saída de um palco lhe sorriu, apertou a mão mas nada disse. Também conta a paixão pelo jazz.

Os editores revelam que só em 17 de novembro, o dia do lançamento mundial simultâneo foram vendidos mais de 900 mil exemplares. O plano de comunicação associado ao lançamento foi um tsunami. Com fartura de entrevistas e até incluiu a lista dos livros preferidos por Obama.  

Neste Uma Terra Prometida apenas temos cerca de um quarto dos oito anos de Obama na presidência dos EUA. Já ficou prometido que as questões raciais e de política migratória ficam para o próximo volume. Também fica para ler como Obama analisa o que é que na presidência dele contribuiu para, a seguir, a eleição de Trump. E o que é que o frustra não ter conseguido.

Neste primeiro volume com Barack Obama a analisar a presidência Obama ficamos com bases para compreender como uma presidência destinada a liderar grandes transformações, mudou muito mas deixou tanto na mesma. Por isso desagrada a muitos democratas mais progressistas. Apesar da nostalgia que deixou ao sair da primeira linha política.

OUTRAS ESCOLHAS, OUTROS LIVROS:

A Life on our Planet, de David Attenborough. Como será o futuro? No final do ano em que está a ser conseguida a vacina para enfrentar a SARS-CoV-2, será que vamos conseguir meios para combater as alterações climáticas? O grande naturalista britânico, sir David Attenborough, criador de extraordinários documentários sobre a vida no planeta, agora, aos 94 anos, confronta-nos com o caso de Pripyat, cidade da Ucrânia adjacente a Chernobyl, onde desapareceu qualquer vestígio de vida após a explosão na central nuclear. A nossa civilização corre o risco de autodestruição? Sim, mas vamos a tempo para evitar a autodestruição se nos libertarmos da dependência do carbono e do petróleo, se gerarmos energia renovável e eletricidade a baixo custo para todos. Attenborough dixa uma mensagem de esperança: é possível um mundo sustentável sem renunciar ao desenvolvimento sustentável. A Vida na Terra e Aventuras de um Jovem Naturalista são outras enriquecedoras leituras de David Attenborough.

Um investigador e filósofo com saber que cruza o Ambiente com os Assuntos Europeus, Viriato Soromenho-Marques, propõe-nos em Depois da Queda interessante reflexão sobre a crise existencial desta fragmentada Europa agora à beira do divórcio com o Reino Unido e dividida por contradições internas.

Cinco voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso, de Alexandra Lucas Coelho. É o livro que fecha a trilogia brasileira de Alexandra, que também inclui Vai, Brasil e Deus-dará. Junta a observação acutilante e sensível da grande repórter com o talento da mulher se dedicou (sempre, também como jornalista) à literatura. Com a arte da conversa que avança puxada pela conversa, Alexandra responde ao desafio-provocação que Caetano lhe lançou depois de ler Deus-dará: “Falta Bahia neste livro”. A quinta viagem de Alexandra à Bahia dá corpo ao relato, entre a reportagem e o romance, que compõe neste Cinco Voltas, um mosaico da vida em Salvador e na Bahia que lhe está em volta. Vai de Porto Seguro do tempo colonial, com as marcas deixadas pela escravatura  (tema que percorre muito da investigação de Alexandra),  passa pelos tantos símbolos que integram a complexidade da Bahia (a religião e as infinitas igrejas que “uma vida não chega” para conhecer, o Pelô onde os escravizados eram castigados, as fitinhas da Senhora do Bonfim, o sabor do acarajé, o padre António Vieira a quem, por entre a conclusão dos Sermões, “nada dos céus e mares da Bahia lhe terá sido estranho”) até ao tempo de agora, com uma forma de biografia afetiva de Caetano e da família Velloso (sim, “com dois éles”) neste roteiro com a experiência dela própria, a escritora. Da vontade de ouvir Caetano enquanto lemos.  [Declaração de interesses: a Alexandra é uma amiga de há 30 anos, de quem gosto muito]

Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo. Ouvimos falar desta anglo-nigeriana quando no ano passado foi premiada com o Booker, por este livro com 480 páginas. Relata, com escrita a meio caminho entre a prosa e a poesia, as vidas de uma dúzia de mulheres negras, jovens e velhas, heterossexuais e lésbicas. É o caso de Amma, dramaturga que após uma vida nas margens consegue estrear uma peça no National Theatre. E o de Brummi, empregada de limpeza que se enamora por outra mulher. Ou o de Carole, negra formada em Oxford que chega ao topo de um banco na City de Londres. Também de LaTisha, que começou a escola com Carole mas que ficou pela caixa de um supermercado. A cada mulher é dedicado um capítulo inteiro, mas cada uma reaparece nos capítulos de outros. É um romance construído como um puzzle, com escrita não convencional. É excelente prenda.