O processo judicial relativo ao antigo primeiro-ministro José Sócrates trouxe para a ordem do dia vários problemas de que padece o nosso sistema judicial e, de um modo geral, a sociedade portuguesa. Entre eles figuram a forma como se deve fazer o combate à corrupção, a questão das chamadas provas indiretas, o papel do Ministério Público (MP) e a atuação dos órgãos de comunicação social (OCS). Comecemos por este último.
1 – Uma das grandes questões que a «Operação Marquês» nos coloca é a da total falência do modelo de informação seguido pela generalidade dos órgãos de comunicação social portugueses. As primeiras vítimas desse modelo informativo são a objetividade, a imparcialidade e o rigor que deveriam orientar a produção da informação. É difícil ou mesmo impossível encontrar um jornalista português que não tenha uma posição inabalável sobre a culpabilidade ou inocência de Sócrates. Mas, pior – muito pior - do que isso, é que sempre se preocuparam mais em transmitir ao público as suas opiniões ou os seus estados de alma do que os factos objetivos que o caso ia gerando. Ou seja, sempre pretenderam mais «colonizar» os leitores, os ouvintes ou os telespetadores com as conclusões que iam tirando dos elementos processuais que os magistrados lhes iam fornecendo, do que proporcionar aos destinatários da informação os elementos factuais que lhes permitissem formar autonomamente as suas próprias conclusões. E o resultado é o que se vê: o processo judicial ainda nem sequer chegou a meio do seu previsível tempo de vida e já a sociedade portuguesa formulou um veredicto definitivo sobre a culpabilidade do arguido.
Durante anos e anos, os OCS transmitiram para a opinião pública não os factos por si autonomamente investigados, mas apenas a versão de uma das partes – a acusação – e a sua opinião (dos jornalistas) sobre a versão dos acusadores. Durante anos e anos os magistrados (MP e juiz de instrução) revelaram ou permitiram que fosse revelado a certos órgãos de informação elementos do processo cirurgicamente escolhidos, todos eles sempre favoráveis às teses incriminatórias, com o intuito claro de criar um ambiente social não só favorável à condenação, mas sobretudo hostil a qualquer decisão que não fosse precisamente a condenação que já tinham engendrado nas suas doutas cabeças. E os jornalistas limitaram-se a transformar esses elementos processuais em notícia sem qualquer respeito pelo princípio do contraditório. Ou seja, os OCS em vez de se distanciarem do processo para poderem noticiá-lo com objetividade, isenção e imparcialidade, entraram nele pela mão de uma das partes, assumiram os interesses dessa parte como verdades absolutas e, depois de terem sido fanatizados pelo MP, começaram eles próprios um processo de fanatização da sociedade em favor daqueles interesses. E a triste evidência de tudo isso é ver, agora, nas páginas dos jornais e nos ecrãs das TVs, ou ouvir nas rádios, muitos jornalistas ditos profissionais a apedrejar moralmente um juiz de instrução porque ele não proferiu a decisão que esses jornalistas queriam. E quanto maior é a ignorância jurídica desses jornalistas, maior é a ferocidade dos ataques que dirigem ao magistrado. A sequência lógica de tudo isso é a petição que circula publicamente, já com mais de 165 mil assinaturas, exigindo à Assembleia da República (ignorando totalmente o princípio da separação de poderes) a expulsão da judicatura do juiz de instrução. Ou seja, se um juiz de direito profere uma decisão que não corresponde às convicções políticas de certas pessoas, imediatamente essas pessoas exigem a expulsão da judicatura do referido juiz. Tal como nas ditaduras, só pode haver nos tribunais juízes que decidam sempre em certo sentido. Foi a isto que conduziu a inescrupulosa manipulação dos jornalistas por parte dos magistrados do processo e, sobretudo, foi a isto que conduziu a manipulação da informação levada a cabo pelos próprios jornalistas ao serviço dos interesses processuais desses magistrados.
Contudo, nem tudo estará perdido se os jornalistas portugueses – todos os jornalistas (os que se deixam manipular, os que conscientemente instrumentalizam a informação ao serviço de interesses e estratégias que nada têm a ver com a informação e, sobretudo, aqueles poucos que heroicamente têm recusado essa indignidade) – fizerem no interior da classe a reflexão, o debate e a autocrítica que a situação exige, com vista à reversão do processo de degradação deontológica em curso.
2 - Outra das grandes preocupações suscitada pelo processo em que José Sócrates é arguido tem a ver com a súbita sacralização das chamadas provas indiretas. Resumidamente, a prova indireta consiste na possibilidade de se concluir em favor de um determinado facto controverso a partir de um ou mais factos incontroversos. Vejamos alguns exemplos bem conhecidos: N. Sacco e B. Vanzetti, dois imigrantes italianos anarquistas que foram julgados, condenados e executados na cadeira elétrica nos Estados Unidos (Massachusetts), nos anos vinte do século passado, sob a acusação de homicídio com base em provas indiretas. Tinha havido um assalto a uma sapataria que se traduziu no roubo de 15 mil dólares e duas mortes a tiro. Os dois imigrantes foram considerados suspeitos (mais por serem anarquistas e estrangeiros do que por qualquer outra circunstância), e na sua posse foram encontradas armas iguais ou semelhantes às que tinham sido disparadas contra as duas vítimas mortais do assalto. A partir desse facto incontroverso (a posse de armas de fogo idênticas às do duplo homicídio), o tribunal conclui o terrível facto controverso: o de que Sacco e Vanzetti tinham sido os autores dos crimes e, por isso, foram condenados à morte e executados. Um facto determinante nessa condenação foi também o papel desempenhado pela imprensa americana, já que também ela foi terrivelmente hostil aos dois acusados, tratando-os sempre como bandidos perigosos.
Mais recentemente, no Brasil, Lula da Silva foi condenado pelo juiz Sérgio Moro, num processo em que a principal prova da acusação também era indireta. O facto de o ex-presidente do Brasil ter visitado, juntamente com a mulher, um apartamento triplex no município de Guarujá, Estado de São Paulo, e de posteriormente o apartamento ter sido remodelado (factos incontroversos) levou a que o juiz Sérgio Moro concluísse que esse imóvel tinha sido dado a Lula da Silva por uma empresa de construção civil como contrapartida de benefícios ilícitos que teria recebido do governo brasileiro quando este era presidente (factos controversos). E isso apesar de não haver nenhuma prova substantiva de que o apartamento era mesmo propriedade de Lula ou de algum seu familiar ou até de que o ex-presidente tivesse estado de facto envolvido em quaisquer benefícios à dita construtora.
O grande problema do paradigma das provas indiretas é que ele permite ao juiz, e em certos casos ao próprio MP, escolher (entre a panóplia de factos controversos que se podem extrair de um ou mais factos incontroversos) aquele ou aqueles factos que o magistrado quiser. Se não tem cabras e vende cabritos é óbvio que os rouba, dirão sem hesitação certos juízes e muitos jornalistas. E isso permite toda a arbitrariedade. Os grandes erros da história judicial deveram-se sempre às chamadas provas indiretas. É também por isso que a administração da justiça em Portugal é um verdadeiro «totoloto». Se o processo for distribuído a este juiz eu serei condenado porque, através do mecanismo das provas indiretas, ele escolherá a partir dos factos incontroversos os factos controversos que me incriminarão; se o processo for distribuído aqueloutro juiz ele irá valorizar os factos que não me incriminam e eu serei absolvido. O parâmetro para a resolução dos problemas jurídicos deixa, assim, de estar na norma geral, abstrata e objetiva e passa para a decisão individual e subjetiva do caso concreto. Abandona-se, desse modo, a segurança normativa da lei para entrar no arbítrio da vontade dos juízes.
É claro que se tivéssemos bons juízes, rectius, se todos os juízes fossem bons, poderíamos ficar mais tranquilos, porque as nefastas consequências deste problema seriam mitigadas pela boa fundamentação da decisão. Um verdadeiro juiz apresentaria na fundamentação da decisão em que optou por determinado facto controverso (condenatório ou absolutório), não só as circunstâncias que, positivamente, o levaram a essa opção, mas também todas as circunstâncias negativas que o levaram a excluir os restantes factos controversos. Mas essa não é, infelizmente, a cultura jurisdicional predominante no nosso país. Em regra, os juízes fundamentam as decisões mais controversas de maneira tabelar ou meramente formal. Muitas vezes invocando apenas a letra da lei, procedendo à sua transposição literal e mecânica para os alicerces da decisão. «O arguido ficará em prisão preventiva porque há perigo de fuga», dizem muitos juízes nos despachos em que ordenam a prisão preventiva de arguidos! Ora, isso é, exatamente, o que diz a lei. Como fundamento de uma decisão, essa afirmação é uma mera conclusão. Para ela valer como fundamentação de uma verdadeira decisão jurisdicional o juiz deveria indicar todas as circunstâncias que o conduziram àquela conclusão, desde logo porque só assim o visado poderá exercer o seu direito de impugnar, por via de recurso, os fundamentos da decisão de o prender preventivamente. Caso contrário será apenas um exercício patético de palavra contra palavra: o arguido diz que não há qualquer perigo de fuga e juiz limita-se a reafirmar, soberanamente, que há perigo de fuga, mesmo que o arguido tenha sido detido no aeroporto a chegar ao país.
3 - Outro dos problemas evidenciado por este processo é a atuação do Ministério Público, sozinho ou em colaboração com o juiz de instrução. O MP português é constitucional e estatutariamente uma magistratura que é garante da legalidade democrática e portadora em exclusivo dos interesses punitivos do Estado em processo penal. Porém, em regra, atua nos tribunais como se fosse uma das partes, recorrendo muitas vezes a truques processuais baixos ou inadmissíveis num verdadeiro magistrado. Durante anos, andaram a fazer num inquérito dito administrativo investigações – viu-se depois – com intuitos claramente penais, ou seja, tentar atingir um fim não permitido por lei, utilizando um caminho que a lei não previu (um inquérito penal disfarçado de inquérito administrativo). Promoveu-se a prisão preventiva do arguido José Sócrates (e o juiz de instrução decretou-a) sem haver nenhum fundamento sério para a aplicação dessa medida de coação extrema, chegando-se ao ponto de invocar o perigo de fuga quando o arguido regressou voluntariamente ao país para se defender no processo.
Como se veio a constatar no decurso dos anos que durou o inquérito, no momento da prisão de Sócrates nem o MP nem o juiz de Instrução tinham qualquer coisa de substancial para fundamentar essa medida num estado de direito, a não ser a vontade e o poder de o prender. Durante anos, o MP andou à procura não da verdade dos factos, mas apenas dos factos que pudessem sustentar a sua verdade, isto é, o juízo de culpabilidade já formado pelos magistrados titulares do inquérito e sobretudo que pudesse justificar a decisão de prender preventivamente Sócrates. E à medida que o tempo passava e nada se descobria aumentavam as violações do segredo de justiça e as fugas de informação. E, sempre com a cumplicidade de magistrados judiciais (mesmo ao mais alto nível), foram sendo violados todos os prazos legais, incluindo aqueles que a lei declara como prazos máximos, ou seja, prazos que não poderiam ser ultrapassados. Ficamos todos a saber que em Portugal o MP não tem limites de tempo para perseguir criminalmente um cidadão. Pode fazê-lo durante o tempo que quiser, sempre com a aquiescência dos magistrados judiciais, que deveriam limitar essa arbitrariedade. Os magistrados do MP devassaram durante anos e anos as vidas de muitos cidadãos, logo aparecendo nos jornais e nas televisões qualquer aspeto da vida dos visados suscetíveis de os fragilizar processualmente ou de os amesquinhar perante a opinião pública. E, aqui chegados, convém realçar que o Juiz Ivo Rosa demonstrou que é possível evitar as violações do segredo de justiça, pois, nada transpareceu para a opinião pública a partir do momento em que ele passou a ser o titular do processo. E isto é revelador de muita coisa…
Neste processo, o MP chegou a recorrer na prática à figura da delação premiada apesar de tal não ter consagração legal no nosso país. Um dos coarguidos prestou no processo um depoimento que não agradou aos magistrados do MP. Então estes emitiram um mandato de detenção para o arguido ser presente ao juiz a fim de lhe ser aplicada a prisão preventiva. Depois de negociações entre representantes do arguido e o MP foi retirado o mandato de detenção e o arguido foi aos autos prestar o depoimento que o MP queria. Noutros tempos, em Portugal, usava-se a tortura do sono e os espancamentos para obter dos presos os depoimentos que a polícia e os magistrados pretendiam; hoje usa-se e manipula-se a prisão preventiva para os mesmos objetivos.
E, ao fim de cerca de sete anos de investigações com sistemáticas violações dos direitos dos arguidos e de manipulações da opinião pública através de permanentes fugas de informação, o que o MP apresentou foi um mastodonte com pés de barro. O processo cresceu na razão direta do enraivecimento das turbas e da fragilidade das teses incriminatórias. Foram constituídos quase três dezenas de arguidos e milhares de novos factos (a maioria deles sem relevância jurídico-criminal), que transformaram o inquérito num megaprocesso insuscetível de ser decidido em tempo processualmente útil nos nossos tribunais. Assim o MP salvava a sua face porque quando a decisão final transitasse em julgado nada seria igual ao que era no tempo do seu início – nem os sujeitos processuais, nem os magistrados, nem os tribunais, nem o país. Eis o que o MP apresentou ao país no final do inquérito: uma acusação de quase 4 mil páginas contra 28 arguidos (19 deles pessoas humanas e os restantes pessoas coletivas), 53 mil páginas de investigação, 77 mil páginas de documentos anexos, 8 mil páginas de transcrições de escutas telefónicas, 103 horas de vídeos com os interrogatórios dos arguidos e 322 horas com gravações de depoimentos.
Foi isto que o MP apresentou ao país e aos arguidos, tentando, sub-repticiamente, transformar o processo-crime contra um dirigente político (um antigo primeiro-ministro) num processo político contra o seu governo, contra o sistema político e económico, senão mesmo contra o próprio regime. E isso para gáudio de setores políticos bem determinados, os mesmos que agora bolçam ódio contra o juiz que na decisão instrutória desmontou tudo isso. Assim, sob essa montanha de papel e de infindáveis gravações áudio e vídeo, se pretendeu esconder a incompetência do MP e ocultar a fragilidade incriminatória da acusação. Mas há na acusação, pelo menos aparentemente, uma dimensão de desonestidade intelectual que não pode ser ignorada. No momento em que a acusação foi apresentada, praticamente todos os crimes de corrupção imputados aos arguidos estavam prescritos de acordo com a legislação em vigor na data em que os factos constitutivos desses crimes teriam, alegadamente, sido praticados. As posteriores alterações da lei não podem ser aplicadas neste caso devido ao princípio da irretroatividade das leis penais. Matematicamente, os prazos prescritivos já tinham decorrido quando a acusação foi notificada aos arguidos, pois nada tinha suspendido ou interrompido esses prazos. E isto constitui uma falha grave do MP, não só pelo facto em si mesmo de acusar por crimes prescritos, mas sobretudo pela intenção que lhe subjaz, ou seja, por poder constituir uma tentativa de manipular a opinião pública em favor das teses incriminatórias, açulando ainda mais as turbas mediáticas e sociais contra os arguidos. Ou seja, criar artificialmente um alarme social de tal dimensão que cortasse qualquer «veleidade não incriminadora» por parte do juiz que viesse a proferir a decisão instrutória. No ordenamento jurídico português os magistrados do MP estão estatutariamente subordinados a rigorosos critérios de legalidade e de objetividade que não são compatíveis com este tipo de práticas processuais.
4 - Uma última palavra sobre o grande problema do combate à corrupção em Portugal. Há três caminhos principais e simultâneos para fazer esse combate. O primeiro é o combate político. Tal como a boa moeda deve expulsar a má moeda do sistema monetário, também os políticos sérios devem combater e procurar afastar os políticos desonestos, que utilizam os cargos em benefício próprio ou da família. Ora, em Portugal a generalidade dos políticos sérios protege quase sempre os políticos desonestos ou, pelo menos, cala-se perante os seus desmandos. Gostam muito de explorar mediaticamente os processos judiciais contra os adversários, mas são quase sempre incapazes de denunciar atos ilícitos praticados por outros políticos. Assim como os bons e os maus magistrados se protegem uns aos outros unidos pelo cimento da camaradagem sindical (todos ou quase todos são membros do mesmo sindicato), também os agentes políticos em Portugal, sobretudo aqueles que não sabem fazer outra coisa, estão «profissionalmente» solidários entre si, apesar da retórica espalhafatosa com que tentam fazer crer que são ferozes opositores recíprocos. É necessário que, em vez de uma vigilância formal ou retórica das oposições aos governos, seja feito um verdadeiro escrutínio da atividade material dos governantes. Em vez da demagogia e de tiradas oportunistas sobre algumas decisões do governo, os políticos sérios deveriam pôr o dedo nas feridas que constituem algumas decisões ou omissões governamentais.
É necessário, por outro lado, coragem para introduzir algumas reformas políticas sem as quais o combate político à corrupção continuará a ser uma miragem. A principal reforma a fazer consiste em criar uma incompatibilidade absoluta entre a titularidade da função de deputado na Assembleia da República e a atividade de advogado. Quem está no Parlamento a fazer leis em nome do povo não pode ser ao mesmo tempo representante de interesses privados interessados nessas leis. Os deputados estão no parlamento para fazer as leis da República e não para traficar influências em benefício dos interesses dos seus clientes privados. E isto é hoje tão escandalosamente óbvio que torna a situação atual cada mais injustificável aos olhos dos cidadãos preocupados com a res publica. Outra das reformas necessárias para um eficaz combate à corrupção seria a de impedir o estado de recorrer aos tribunais arbitrais que cada vez mais são um instrumento de legalização ou legitimação de verdadeiros assaltos ao património público.
Depois, o combate à corrupção pode fazer-se também pela via da cidadania. Os cidadãos não devem nunca deixar cair esse assunto no esquecimento. É claro que nem todos os agentes políticos são corruptos, mas alguns são e os outros ficam calados. E, como dizia Martin Luther King, o que é mais preocupante, por vezes, não é a ação das pessoas corruptas, mas o silêncio das pessoas honestas. Basta que haja um político desonesto, um só que seja, para que todos nós nos devamos preocupar com isso. Basta haver no cesto uma maçã podre para que não possamos estar tranquilos. A intervenção dos cidadãos pode fazer-se de muitas maneiras desde as conversas particulares, cartas para os jornais, intervenção nos fóruns dos órgãos de informação, nas reuniões partidárias e sobretudo através do exercício do direito de voto, optando por não votar (por muito que isso lhes possa custar) em partidos que demonstram tolerância com práticas de corrupção, de nepotismo, de tráfico de influências ou sobre cujos dirigentes possa haver suspeitas legítimas de usar os cargos do estado ou da administração em benefício pessoal. Como corolário deste combate da cidadania está – deveria estar - a atuação dos órgãos de comunicação social. Infelizmente, neste domínio, para além da ação residual de alguns d. quixotes do jornalismo, não há muito a esperar.
Falemos, finalmente, do principal meio de combate à corrupção que, em Portugal, têm sido os tribunais. Os principais problemas do combate judicial à corrupção não estão hoje tanto nas leis como na própria cultura judiciária que fundamentalmente é mais uma cultura de poder e de arbitrariedade do que uma cultura de responsabilidade, de eficácia e de respeito pelos cidadãos. As sucessivas alterações na legislação penal e processual penal que foram feitas nas últimas décadas, sob pressão dos magistrados (em muitos casos em violação do princípio da separação de poderes), foram todas no sentido de diminuir e restringir o alcance prático das garantias processuais dos arguidos. O que alguns setores sociais e mesmo alguns magistrados desejam é a eliminação de qualquer modelo que garanta direitos aos suspeitos de um crime, os quais deveriam, segundo esses setores, aparecer juridicamente agrilhoados perante os investigadores e os juízes confessando tudo o que estes gostariam de ouvir.
Por outro lado, o que deve prevalecer nos tribunais é a lei e não a vontade dos juízes, os quais têm de estar rigorosamente subordinados àquela e não o contrário. É a lei geral, objetiva e abstrata que constitui o eixo em torno do qual deve girar a roda da administração da justiça, e não a vontade do juiz. Este não é um especialista em todas as matérias que tiver de julgar e, por isso, deve ser assessorado por bons especialistas, a fim de compreender muito bem aquilo sobre que pedem o seu veredicto. E deverá ser o juiz a escolher esses especialistas, desde que não seja para dar emprego a amigos ou familiares.
Ao contrário do discurso tremendista de alguns setores político-mediáticos, segundo o qual não será possível um genuíno combate à corrupção com este sistema de garantias previsto na nossa ordem jurídica, o que um republicano deve afirmar é que um verdadeiro combate à corrupção só poderá ser levado a cabo no quadro de um sistema de garantias igual ou semelhante aos que atualmente existem nas democracias ocidentais, no quadro dos quais o sistema português não é seguramente o mais «garantístico». Um combate à corrupção e à criminalidade em geral sem um genuíno sistema de garantias processuais só é viável como um instrumento de repressão política ou social. Esse modelo só é possível num ambiente cultural em que o sentimento de vingança social se sobreponha ao sentimento ético-jurídico de justiça. E, como devíamos todos saber, a vingança não é justiça e a justiça não é vingança. Só em ditadura um sistema desses poderá funcionar, mas então como um fim em si mesmo e não como instrumento de pacificação social através da realização da justiça. Além disso, um tal modelo acabaria por se tornar uma inutilidade porque as ditaduras não combatem a corrupção, antes a escondem. Em ditadura não se perseguem os corruptos, mas sim aqueles que a denunciam.
Em síntese: só um direito penal humanista e da Ilustração, que coloque a pessoa humana no centro das suas preocupações, poderá contribuir eficazmente para a realização dos valores superiores do Estado de Direito, entre os quais está a punição do crime de corrupção.
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