Ainda hoje, mais de uma semana depois de ter rebentado a bolha que levou o governo ao tapete e de terem sido divulgados pormenores sórdidos sobre a maneira como os mais altos políticos do país resolvem constrangimentos da mais diversa ordem, continuo a ouvir gente defender o indefensável, a encontrar desculpas para o que não tem justificação.
"Todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa". A presunção da inocência é um princípio fundamental do direito penal português e da União Europeia, entre outros Estados. No entanto, uma coisa é o julgamento da justiça - demasiado lento, é certo -, outra coisa é o julgamento moral. Se o primeiro cabe exclusivamente aos tribunais, o segundo cabe a cada um de nós e é bom que o exerçamos sem margem para dúvidas.
No dia da demissão, 7 de Novembro, António Costa recusou a prática "de qualquer acto ilícito ou censurável", para apenas quatro dias depois, a 11 de Novembro, meter o pé na poça e mostrar que, afinal, não percebeu nada de nada, nem sequer o que o atingiu (e a todos nós) com tanta violência.
Desde logo quando pediu ao presidente da República, que acedeu, para se reunir com a procuradora-geral da República, Lucília Gago. Depois quando, à hora dos telejornais e a partir da residência oficial, 'explicou' ao país o seu comportamento e de membros do seu governo, fazendo a defesa pública das acusações de que ambos são alvo. Ou, ainda pior, quando insistiu na bondade da solução apresentada ao presidente da República para evitar eleições: convidar Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, para chefiar o executivo. Em directo, continuou a confundir conceitos tão importantes como o da independência e da separação de poderes.
Mas não foram apenas Costa e Centeno que acharam tudo isto normal. Esta quarta-feira, o Banco de Portugal tornou público o parecer da sua Comissão de Ética, que entende que o governador "cumpriu os seus deveres gerais de conduta", embora admita que, "no plano objectivo", os desenvolvimentos político-mediáticos "podem trazer danos à imagem do Banco". E pronto, os anormais somos nós, que acreditamos que esta promiscuidade mina a confiança nas instituições.
António Costa está na política desde os 14 anos, não é um maçarico. E fez as suas escolhas - muitas vezes contra tudo e contra todos, numa posição até arrogante e prepotente: "Habituem-se!" Foi ministro nos governos Guterres e Sócrates, a primeira vez há 27 anos. Agora, diz-se "envergonhado" e "traído" pelo seu chefe de gabinete, Vítor Escária, e por Diogo Lacerda Machado, a quem, "num momento de infelicidade", chamou amigo. E fez, publicamente, aliás, o seu julgamento moral.
Também faço o meu: sinto-me envergonhada e traída por uma classe de políticos que preferia que o país não tivesse e por um estado de coisas que não queria deixar aos meus filhos como legado. Por casos e casinhos de cunhas e de familygates, semi-resolvidos a posteriori a poder de despachos de conveniência, onde resta sempre um buraco, uma oportunidade para o senhor que se segue.
António Costa teve tudo: uma maioria absoluta para poder aprovar medidas e leis, dinheiro a rodos vindo de Bruxelas, como nunca antes tivemos e nunca mais vamos ter, e, até, a inflação, que ajudou a amealhar ainda mais dinheiro em impostos, muito mais do que aquele que foi devolvido aos portugueses em ajudas ou serviços públicos de qualidade. Apesar disso, o caos tornou-se o novo normal e os anormais somos nós, que assistimos.
"À justiça o que é da justiça e à política o que é da política", verdade tão querida de António Costa e frase batida nestes últimos oito anos, é apenas afirmação de quem quer desresponsabilizar-se. Porque quem tutela a justiça é a política, o governo. Se há problemas na justiça, não terão sido identificados apenas porque o primeiro-ministro é visado numa investigação - seria errado presumir (ou nem quero pensar nisso) que tudo é revanche, perseguição ou abuso de poder - e, já agora, o Procurador-Geral da República, único magistrado do Ministério Público sujeito a designação pelo poder político, é nomeado pelo presidente da República sob proposta do governo.
Sabemos que são inúmeros os expedientes dilatórios utilizados para adiar ou evitar julgamentos e muitos crimes acabam por prescrever. Do lado dos políticos, a falta de reformas que impeçam a morosidade processual, bem como a escassez de meios.
Cada diligência suscitada pelos arguidos ou pelas partes consta do Código do Processo Penal. Para dar um exemplo que muitos conhecem, ao não aprovar uma Lei dos Metadados, e porque a que existia violava regras constitucionais e decisões do Tribunal Europeu de Justiça, milhares de processos, entre eles de pedofilia e pornografia infantil, acabaram por cair. E vão continuar a cair.
Há dias a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, disse na Assembleia da República, num debate da especialidade, que um dos objectivos do orçamento para 2024 é reforçar o combate à corrupção: "Este é um orçamento que permitirá manter o foco no combate determinado contra a corrupção, criminalidade económico-financeira e cibercriminalidade". O dinheiro é necessário, pois claro, mas de boas intenções está o inferno cheio, como se pode ver aqui ou aqui.
O PS governou 23 dos últimos 28 anos, é o principal culpado da situação a que chegámos, mas não é o único. A Operação Influencer - porque a dar nomes a operações ninguém bate as nossas polícias -, é um pequeníssimo exemplo disso. Pelo menos desde 2016 que se tenta regular o lobby em Portugal. Em 2019 o diploma foi chumbado pelo PSD, BE, PCP e PEV. Há dois anos foi rejeitado pelo PS, PSD e PCP. O lobbying é uma actividade legalizada nos Estados Unidos e na União Europeia, entre outros. O objectivo é tornar a representação de interesses uma prática transparente (embora em Portugal se queira deixar os advogados de fora, o que à partida fere de morte qualquer diploma).
"Todos temos direito a uma hora infeliz por dia, o que é preciso é que seja a dormir", dizia Jorge Jardim Gonçalves com piada (bem sei, os banqueiros não estão no topo das preferências dos portugueses, mas é preciso convir que a expressão tem graça). Vale a pena, por isso, fazer-se uma profunda reflexão em torno das instituições e exigir as mudanças absolutamente necessárias. E de olhos bem abertos.
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