Na terça-feira, o Presidente Biden disse: “Gastámos um trilião de dólares em vinte anos e treinámos e equipámos mais de 300 mil soldados afegãos; os líderes do Afeganistão têm de lutar por eles, pelo seu país.”
Com esta afirmação pragmática, o Presidente dá oficialmente por encerrado o envolvimento dos Estados Unidos num país que foi sempre impossível de domar, reconhecendo que foram derrotados nos seus objectivos: não eliminaram os taliban, não estabilizaram o país e não garantiram o seu futuro.
Foi em Outubro de 2001, no seguimento ao ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque, que os americanos, acompanhados por forças de outros países aliados (Reino Unido, Canadá, Austrália, Itália, Nova Zelândia e Alemanha) invadiram o Afeganistão por terra e ar, dispostos a vingar o insulto e a morte de três mil pessoas.
Ao princípio, a guerra correu-lhes bem. Apoiados pela Aliança do Norte - o grupo de senhores da guerra afegãos que também se opunham aos taliban - a 17 de Dezembro declararam vencido o Emirado Islâmico, e em 2004 conseguiram promover uma eleição “democrática” da qual resultou um governo e um aparelho de Estado. Para isso, além dos cerca de 2.500 soldados mortos, gastaram biliões a construir infra-estruturas, escolas e, em geral, a incentivar a mudança para valores ocidentais do século XXI duma sociedade tribal, tradicional, muçulmana e conservadora.
Só podiam falhar. Um dos maiores problemas dos norte-americanos é não saberem tirar lições da História – nem da dos outros, nem da deles.
Começando pelos “outros”: o Afeganistão, que durante séculos foi mais um conjunto de tribos de várias etnias rivais do que um país, sempre se mostrou inconquistável. Quando vem alguém de fora, atrás não se sabe bem de quê (a única riqueza do país, a papoila do ópio, é recente) as tribos juntam-se todas e, ajudadas por uma geografia inóspita, conseguem desgastar o invasor pela exaustão. No século XIX, foram os ingleses, vindos da Índia, e os russos, descendo do Norte, que tentaram em vão estabelecer um Estado vassalo. (Vale a pena ver “O homem que queria ser rei”, filme de 1975 baseado no livro de 1888 de Rudyard Kipling.)
Em 1979, a Rússia, então União Soviética, tentou novamente, usando todo o seu aparato militar e mais o proverbial desrespeito pelas leis que regem os conflitos armados. Até brinquedos-bomba lançaram nas aldeias rebeldes, visando as crianças. Oficialmente, estavam a apoiar o governo socialista então instalado em Cabul, do senhor da guerra Mohammed Daoud Khan. Chegaram a ter cem mil homens no terreno, com os melhores equipamentos. Dez anos e 15 mil mortos depois, os soviéticos viram-se obrigados à retirada. Só para se ter uma ideia, tinham perdido 333 helicópteros. Daoud e a família foram executados.
Este conflito, designado por vezes “o Vietname dos russos”, envolveu, por um lado, mujahidins shiitas, a Alemanha Oriental (RDA) e a Índia, e por outro, mujahidins sunitas, o Paquistão, a Arábia Saudita e a China. Os sunitas receberam apoio logístico e material dos norte-americanos, Reino Unido e Alemanha Ocidental (RFA). A Al-Qaeda terá surgido nesta época, dizendo-se que Washington ajudou a criar Osama Bin Laden através da CIA – o que Washington sempre negou, evidentemente.
Ao todo, terão morrido cerca de um milhão e quinhentos mil afegãos e quatro milhões refugiaram-se em países vizinhos – Irão e Paquistão, conforme fossem shiitas ou sunitas. Mas o facto é que o Afeganistão, mais uma vez, repeliu o domínio estrangeiro.
Terminada a guerra, todos os envolvidos estrangeiros se desinteressaram daquele país inconquistável. Quem passou a orientar as operações, negociando com os líderes tribais, foi o Paquistão. É neste clima que surge o movimento taliban (“aprendiz” ou “estudante” na língua local), em 1994. Durante o resto da década de 1990 os afegãos, livres de inimigos externos, lutaram entre eles, como sempre tinham feito. Morreram cerca de 400 mil em combates entre os senhores da guerra. Em 1996 Cabul caiu na mão dos taliban, estendendo o seu regime islâmico radical a todo o país.
Foi este regime, chefiado pelo famigerado Mulá Omar, que abrigou Osama Bin Laden e lhe deu apoio logístico para vários atentados contra forças norte-americanas um pouco por todo o mundo, que culminaram com o atentado às Torres Gémeas.
Mulá Omar morreu em 2015, diz-se que de doença. Osama bin Laden, caçado sem descanso pelos norte-americanos, acabou por ser abatido por um comando de Seals, em 2011, no Paquistão. Aliás, o envolvimento do Paquistão, ou, mais exactamente, do complexo militar/policial que domina o país, aparece em todas as cenas afegãs, ora “ajudando” um lado, ora “apoiando” o outro, sempre por baixo do radar. A região montanhosa na fronteira dos dois países, uma região inóspita e inacessível, é o campo de treino e refúgio das facções em guerra permanente.
Em Agosto deste ano saem do Afeganistão as últimas tropas americanas. Mais uma derrota infligida aos estrangeiros por um povo que não se deixa governar, mas também se governa mal.
E agora o facto dos yankees não saberem ler a sua própria História.
Para não nos alongarmos em pequenos conflitos e grandes considerações, bastam três nomes: Coreia, Vietname e Iraque.
Sendo um país dominado pelos WASPs (White Anglo-Saxon Protestant) os norte-americanos acreditam piamente que qualquer problema se resolve desde que se aplique uma quantidade suficiente de dinheiro e tecnologia. Ao nível pessoal, não basta meditar para se realizar; é preciso meditar num tapete de neoprene e titânio e usar uns headphones que cancelem o som ambiente, com música meditativa, vestindo um body de elastano que comprima as partes certas do corpo. Ao nível militar, os soldados usam joelheiras almofadadas, botas anti-cansaço, coletes à prova de bala, capacetes laminados, meias anti-minas, etc. No Vietname, por exemplo, tinham um programa de computador que avaliava em tempo real a situação geo-estratégica militar e alocava os meios adequados. Se não resultava, era porque o programa precisava ser reprogramado, e não porque os vietcongues, de sandálias com solas de pneus e um trapinho a cobrir a pele, estivessem muito mais motivados, defendessem o seu território e a sua ideologia perfeita.
Posto isto, na Guerra da Coreia, que foi o primeiro grande confronto da Guerra Fria (enquanto a Guerra Fria não era feita por interpostos países), usaram tudo o que tinham de meios e material, e não conseguiram mais do que uma paz negociada, sobretudo pelos próprios coreanos de ambos os lados, que já não aguentavam mais a destruição do seu país. O Pentágono nunca admitiu ter sido derrotado na Coreia, mas a verdade é que não ganhou. Só há duas posições: “winner or loser” (vencedor ou perdedor) e era impossível vencer uma guerra a milhares de quilómetros de distância, com soldados que não sabiam muito bem o que estavam a defender e não tinham cerveja gelada em condições (ver ou rever o filme de Francis Coppola, "Apocalypse Now").
No Vietname a situação foi semelhante, mas numa escala maior. A guerra durou vinte anos, de 1955 a 1975, e terminou com uma derrota tão estridente que não deu para fazer de conta que não foi uma derrota. Toda a gente se lembra das imagens da evacuação da embaixada em Saigão, com os vietcongues à porta. Bombardeamentos massivos das cidades no Norte, desflorestação química, napalm, deslocalização à força de aldeias inteiras, interrogatórios tipo Gestapo dos prisioneiros – nada impediu os pés descalços vietcongues, com um lenço atado na cabeça e kalashnikovs modelo 1942, de darem uma valente sova ao maior complexo militar/industrial do planeta.
No Iraque, a derrota foi doutro tipo. Conquistaram o país e perderam as simpatias da população, que estava farta de Saddam, mas o Saddam era prata da casa e não o queriam substituído por aqueles gigantes desajeitados que nada percebiam da cultura local. Foram tantos os erros estratégicos, como a desmobilização do exército iraquiano, e geopolíticos, como a eliminação do contra-peso regional ao Irão, que a vitória norte-americana só pode ser vista como uma derrota. E lá saíram à pressa, deixando biliões de dólares de equipamento entregues a uma força militar local que logo fugiu. assim que as forças do Daesh avançaram. O Estado Islâmico, um delírio místico-sado-masoquista que atraiu jovens de todo o mundo, é o resultado da “Missão cumprida” apregoada por Bush no porta-aviões.
Quando os Estados Unidos se meteram no Iraque, em 2003, já estavam no Afeganistão, mas ainda na ofensiva. Contudo, qualquer comentador televisivo, já podia prever uma repetição dos cenários anteriores; uma força invasora pouco motivada, por mais bem equipada que esteja, não pode vencer os invadidos, por mais indigentes que sejam. Há a questão da moral das tropas, que todos os grandes generais reconhecem ser o factor crucial numa batalha; e há as questões mais prosaicas do custo da logística, transportar tudo a dezenas de milhares de quilómetros, água inclusive, para manter uma força de luxo operacional.
Moral da História – ou das histórias: Alá só pode ser grande, e não se fazem impérios com banhos quentes e camas fofas.
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