Em vez da habitual pista de atletismo de um estádio olímpico, os 10.500 atletas representantes de 203 delegações nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JO) vão desfilar ao longo de um rio com história de romance infinito, o Sena. Em vez das bancadas de um estádio com largas dezenas de milhar de pessoas, os atletas na cerimónia de abertura vão viajar em bateaux mouches e outros navios fluviais perante 120 chefes de Estado ou de governo e mais de 300 mil pessoas num cenário que tem a Notre-Dame, o Louvre, o Musée d’Orsay, o Grand Palais, vários palácios da política, a sede mais simbólica do poder mediático na cilíndrica Maison de la Radio, muitas das lendárias 37 pontes sobre o Sena e, entre tanto mais, a Torre Eiffel. É algo de nunca visto na abertura do mais célebre dos acontecimentos desportivos no planeta. Leva a que seja pedida a trégua olímpica que faça parar, durante as duas semanas dos Jogos Olímpicos, as guerras que atormentam o nosso tempo. Provavelmente nenhum dos beligerantes vai acolher o apelo a essa trégua.
A extraordinária festa desportiva dos Jogos Olímpicos até leva a que o presidente Emmanuel Macron esteja a tentar que os políticos franceses observem uma trégua política pelo tempo dos jogos. Para Macron, é uma jogada política, ele tenta ganhar tempo para manobras de bastidor que lhe possibilitem diluir os efeitos da pesada derrota política sofrida pelo campo presidencial nas surpreendentes eleições legislativas antecipadas para este último mês, 30 de junho e 7 de julho.
Ainda antes dos JO, o campo presidencial francês já conseguiu, através de uma hábil negociação com a direita moderada, fazer reeleger a macronista Yaël Braun-Pivet para a presidência do parlamento. As oposições à esquerda e à direita gritam que a eleição desta macronista é a negação da derrota nas urnas, é atribuir a presidência do parlamento a quem mais encolheu com o voto dos franceses. Mas a dispensa de maioria absoluta para a eleição da presidência da assembleia permitiu que a combinação de deputados do centro-direita se imponha por 13 votos (220/207) à candidatura da Nova Frente Popular (NFP, aliança das esquerdas, que vai do centro-esquerda socialista e verde à esquerda radical dos insubmissos da LFI) e por 79 votos ao Rassemblement National, a direita ultra de Marine Le Pen e do subitamente apagado Jordan Bardella.
A eleição da presidente do parlamento, sendo incontestável no sistema das regras parlamentares, desencadeou uma tempestade política, com a esquerda NFP a anunciar que não se rende e que quer governar a França, por ser o grupo parlamentar com mais deputados (a esquerda NFP elegeu 182 deputados, os macronistas Ensemble caíram de 228 para 168, os lepenistas Rassemblement têm 143 e a direita moderada LR ficou com 46 deputados)
Macron continua a pedir aos políticos franceses a trégua olímpica, mas estes não seguem por essa pista. A esquerda NFP acaba de desencadear o contra-ataque sobre o macronismo ao apresentar uma proposta de anulação da lei do governo presidencial que tinha aumentado a idade da reforma. A direita ultra do Rassemblement odeia o esquerdismo da NFP, mas concorda com a proposta e vai votar para a aprovar.
O campo presidencial fica com a evidência de não ter condições para governar.
A política francesa passou a estar dominada pela forte tensão entre três famílias políticas, todas hostis entre si e sem que alguma consiga maioria suficiente para governar.
O campo macronista, que tenta o tudo por tudo para continuar determinante no governo, tem tentado uma cisão no bloco da esquerda NFP: ambiciona a descolagem dos socialistas e dos verdes, para assim formar uma maioria central em que os macronistas seriam charneira numa aliança com a direita republicana e o centro-esquerda socialista e verde.
Para Macron o grande objetivo é barrar tanto a direita lepenista (33% do parlamento) como a esquerda insubmissa (15%).
Mas as lideranças do PSF e dos Verdes juram fidelidade ao bloco de esquerda NFP, apesar de ter sido formado à pressa, sem grandes debates, nas vésperas das eleições, por mera conveniência eleitoral.
A esquerda NFP passou duas semanas confrontada com um impasse interno: os insubmissos de Mélenchon, por serem o partido com mais deputados dentro da NFP, querem impor a indicação de alguém deles (linha dura) para chefiar o governo francês; socialistas, verdes e até os comunistas PCF entendem que a NFP deve indicar para a chefia do governo uma personalidade do centro esquerda com perfil capaz de juntar consensos com o centro.
Nesta terça-feira, 23 de julho, as esquerdas NFP conseguiram a surpresa: superam as várias intransigências e a uma escassa hora da primeira entrevista do presidente Macron depois das eleições, anunciaram um nome, Lucie Castets, muito desconhecida diretora de finanças na câmara (socialista) de Paris, como candidata comum a primeira-ministra. No comunicado conjunto dos quatro partidos da NFP a escolha é justificada pela competência técnica e percurso de Castets como servidora pública.
A NFP sabia que ia marcar a entrevista que Macron quis dedicar ao elogio da França na organização dos Jogos Olímpicos de 2024. O presidente, na entrevista (à televisão e à rádio pública francesa) desvalorizou o anúncio. Revelou que não ia chamar Lucie Castets, nem sequer para consultas. Justificou que para ele a formação do próximo governo não é questão de nome para liderar, mas de acordo político entre partidos que proporcione uma maioria parlamentar para governar. Macron chegou a desafiar: os partidos republicanos (do centro-direita à esquerda) que foram capazes de concretizar um acordo que barrou a possibilidade de um governo ultra do Rassemblement lepenista, devem saber corresponder ao voto dos franceses e conseguir negociar um programa comum de governo.
Significa que o impasse político está para continuar. Macron antecipou que até ao meio de agosto, final dos JO, não vai avançar no tema novo governo para a França.
Assim, durante as duas semanas dos JO e, muito provavelmente, mais duas com paralímpicos, o governo da França vai continuar a ser o demitido de Gabriel Attal, com funções limitadas a gestão corrente exceto para os assuntos de segurança.
Acabado o tempo dos Jogos, Macron vai mesmo ter de abrir consultas sobre a formação de uma maioria e indicar alguém para chefiar o governo. Se não for conseguido o milagre de alguma aliança, qualquer novo governo é imediatamente derrubado pela maioria negativa para aprovar qualquer moção de censura.
No atual parlamento francês há várias maiorias negativas e, até agora, nenhuma positiva, desbloqueadora.
É de admitir que na sexta-feira de abertura oficial dos JO (a competição começa dois dias antes) a trégua política impere.
Todos vão certamente aplaudir com entusiasmo a segunda das 203 delegações a desfilar pelo rio Sena. É a dos 37 atletas na equipa olímpica de refugiados. Inclui atletas perseguidos em 11 países governados por tirania ou em guerra. Esta delegação é encabeçada por três mulheres afegãs que desafiam a submissão imposta à mulher pelo regime talibã. Juntamente com elas, três atletas masculinos também hostilizados pelo poder político afegão. A equipa dos refugiados também integra atletas dos Camarões, da República Democrática do Congo, de Cuba, da Eritreia, da Etiópia, do Irão, do Sudão, do Sudão do Sul, da Síria e da Venezuela. Representam países onde a vida para tanta gente é um inferno. Nesta sexta-feira, vão receber o grande aplauso geral no desfile pelo Sena em que vão aparecer logo a seguir aos gregos que estarão na frente da cerimónia a simbolizar a origem dos Jogos Olímpicos.
Está por saber se a política francesa chega a fazer mais que um dia de pausa pelos jogos. O combate entre os blocos, todos minoritários e com grande hostilidade entre eles, está muito intenso. Não está no horizonte próximo a plataforma maioritária exigida por Macron. A menos que o espírito dos jogos incite ao milagre de composição de uma equipa política de amplo compromisso.
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