Há boas ideias que às vezes aparecem demasiado cedo e por isso a oportunidade de audácia fica perdida. Macron recuperou esta semana uma ideia lançada por Mitterand em 1989. Três décadas depois, é uma oportunidade para que a União Europeia avance com menos quezílias e impasses.

Mitterand foi presidente da França por 14 anos (1981-1995) e marcou uma era de grande orgulho francês, com grandes obras (Museu d´Orsay, Ópera da Bastilha, Biblioteca Nacional de França, a Pirâmide do Louvre, La Vilette, Arche de la Défense, etc) , robusta ação cultural (o ministro Jack Lang tornou-se personagem global), revigoramento do ideal europeu (ao propor Jacques Delors, em 85, para presidente da Comissão Europeia, deu relevância a esta função e propiciou avanços até então impensáveis).

Amado por muitos, Mitterand era detestado por muitos outros. Reconhecido por quase todos como um mestre no jogo político, irritava muitos com a postura que cultivava o mistério. Mitterand era uma personagem de romance. Conseguiu estar 14 anos na presidência sem que alguma vez fosse exposto um caso em volta da vida privada. Muita gente, incluindo muito do jornalismo, sabia que Mitterand para além relação conjugal com Daniéle, partilhava um lado secreto da vida com uma namorada com quem teve uma filha, Mazarine. A revelação só ficou pública depois da morte de Mitterand. Houve então debates sobre se os media deveriam ter exposto essa “vida dupla” do presidente: prevaleceu a defesa de que o que é privado e não tem interferência na vida pública deve ser respeitado como privado. Aconteceu quase o mesmo em relação à doença, cancro na próstata. Agora, seguramente não seria assim, todas as reservas cairiam ao primeiro rumor.

A queda do Muro de Berlim mudou o mundo em novembro de 89, estava Mitterand no oitavo dos 14 anos de mandato. Mitterand, secundado por Delors, decidiu de imediato tomar o comando da agenda europeia: ousou propor a criação de uma “Confederação Europeia”. Pretendia assim acolher numa instituição europeia os países da Europa Central e de Leste recém-libertados, ancorá-los na Europa sem recurso a processos expeditos de adesão à então CEE.

Mitterand foi longe de mais: falou com Gorbachev e ousou propor que “a Rússia com grandes cidades europeias como Leningrado/São Petersburgo e Moscovo” também integrasse a Confederação Europeia. A ideia foi acolhida com entusiasmo por outro grande daquele tempo, o dramaturgo Vaclav Havel, então presidente da Checoslováquia, mas chocou com muitas oposições.

Bush (o pai), tinha acabado de suceder a Reagan como presidente dos EUA e opôs-se a esse cenário de uma Europa tão grande que até incluísse a Rússia. Em Londres, primeiro Thatcher, depois Major, optaram pelo alinhamento com os americanos.

Mitterand e Havel insistiram na ideia de Confederação Europeia como “anel em volta da Comunidade Europeia”, numa cimeira em Praga em junho de 91. Houve negociações em duas noites consecutivas. Acompanhei essa cimeira e impressionou a eficácia da comunicação diplomática francesa, com vários briefings ao longo daqueles três dias.

Mas a maioria opôs-se à proposta de Confederação. Os EUA tinham feito lóbi na Europa para que “as novas democracias do Leste” começassem por beneficiar de uma espécie de “via verde” para adesão à NATO e que, entretanto, fosse iniciado o projeto de adesão desses países à Comunidade Europeia – a maioria veio a aderir entre 2004 e 2007, período em que a União Europeia passou de 15 para 27 estados.

Mitterand, numa conferência de imprensa no final da cimeira de 91 em Praga, em resposta a uma pergunta da rádio pública portuguesa recusou que o abandono da proposta de Confederação Europeia fosse uma derrota, comentou: “é uma ideia com horizontes mas que não avança agora”. Um dos assessores da presidência francesa não se furtou a comentar que a proposta de Mitterand tinha sido “sabotada pelos americanos”.

Três décadas depois, Macron recupera a Confederação de Mitterand e Havel rebatizada como “Comunidade Política Europeia”. É uma resposta à urgência da Ucrânia, provavelmente, também, da Georgia, da Moldávia e de alguns países dos Balcãs.

Talvez agora já seja tempo para ousar esse segundo anel de uma Europa a várias velocidades.

Se esta ideia tivesse sido acolhida nos anos 90, talvez a União Europeia não tivesse ficado encravada em atritos internos com a Polónia e a Hungria.

Há outra boa ousadia na proposta de Macron: que avance a revisão dos tratados europeus e que acabe a regra da unanimidade que tantos bloqueios tem causado.

A guerra com todo o seu horror está a ter o mérito de despertar a União Europeia para que avance e seja mais estímulo de confiança na vida das pessoas.