Contexto um: decorreram manifestações gigantescas de mulheres a protestar contra a nova lei anti-aborto que o Governo do PiS (Partido Lei e Justiça) impôs ao país.
Contexto dois: a Polónia (juntamente com a Hungria) recusava-se a assinar a “bazuca” europeia contra a crise, porque continha críticas ao seu regime “iliberal”. Na quinta-feira, não se sabe a troco de quê, desistiram das suas reivindicações. Quem comunicou a novidade foi vice-primeiro-ministro polaco, Jaroslaw Gowin, ao informar os jornalistas que tinham chegado a um acordo com a Alemanha.
Há anos que a Polónia tem vindo a fazer o papel desagradável de ser o país mais conservador da EU, quebrando a unanimidade necessária nas votações entre membros, várias vezes, com razões consideradas demasiado religiosas para o laicismo prevalecente na União. Ou então defendendo políticas demasiado conservadoras em termos ecológicos. Por exemplo, recusa-se determinantemente a abandonar o uso industrial do carvão.
No caso do aborto, o que o Governo de Mateusz Moraviecki queria (o sistema do país é semi-presidencial, como o nosso) era proibi-lo completamente. A lei já era muito mais restritiva do que a média europeia; a interrupção voluntária da gravidez (IVG) só se permita em três casos, ameaça de vida da mãe, incesto ou violação, e anormalidades graves no feto. A nova lei, que foi empurrada à pressa pelo legislativo e judiciário, afinal provou-se que não era a vontade da maioria da população.
A Polónia entrou para a União Europeia, em 2004, no meio da alegria geral. Depois de terem amargado durante décadas todo o tipo de maldades (a divisão do país entre Estaline e Hitler, a brutal ocupação nazi e o igualmente brutal regime comunista), parecia que finalmente o país ia entrar na sumptuosa União Europeia (onde não se passava fome, imagine-se!) e gozar de autonomia nacional e liberdade pessoal.
Tudo começou em 1989, quando os polacos rejeitaram definitivamente o comunismo, a partir duma revolta sindical liderada por Lech Walesa.
Na verdade, o regime comunista polaco foi-se abrindo gradualmente desde 1980, e nos anos 90 já era considerado o mais liberal da Cortina de Ferro. A passagem dum sistema económico para outro teve o habitual período de confusão e redução de rendimento, mas em 1995 a economia tinha-se adaptado e já estava a crescer.
Entre 2007 e 2014, o primeiro ministro da Polónia foi Donald Tusk, um social-democrata bastante eficiente. Mas em 2014 fez o que se pode chamar uma “durãobarrosada”; conseguiu o prestigioso lugar de Presidente da União Europeia (aliás logo a seguir ao português). E, tal como o seu émulo, deixou no seu lugar uma nulidade política – no caso, Ewa Kopacz, que não era má pessoa, mas não tinha nem carisma nem massa crítica para a apoiar.
É aqui que entram na história os famigerados irmãos Kaczynski e o seu partido, o Lei e Justiça, é diametralmente oposto às suas intenções. No vazio deixado por Tusk, conseguiram ganhar as eleições de 2009 começaram a trabalhar imediatamente em duas frentes. Por um lado, chamar ao poder, não só político mas também judicial e mediático, as pessoas mais conservadoras, ou mais predispostas a fazer parte do seu projecto católico/autocrático. Por outro, apoiaram-se na forte religiocidade dos polacos, avançando com políticas anti emancipação das mulheres, anti-lgbt, anti imigrantes e, pasme-se, anti-semitas.
(O anti semitismo sempre foi muito forte na Polónia e na Rússia czarista, muito antes de surgir na Alemanha. No livro “Sexus” de Henry Miller, há um judeu polaco que relata as atrocidades sofridas pelos seus na Polónia – isto na década de 1920.)
Esta mudança de ambiente político no país é muito bem descrita no primeiro capítulo do livro de Anne Applebaum, “O Crepúsculo da democracia”.
Um dos irmãos, Lech, morreu num desastre de aviação, em 2010, mas o outro, Jaroslav, continua na direcção do partido. Presentemente não tem nenhuma posição oficial no aparelho de Estado, mas é o “boss” incontestável duma máquina que cada vez ocupa mais posições fulcrais no funcionamento do país. O PiS, usando a sua maioria parlamentar e todo um sistema de pressões e favores, conseguiu, por exemplo, escolher a maioria dos juízes dos tribunais superiores, o Supremo e o Constitucional, ultrapassando a Constituição. O actual presidente, Andrzej Duda, é apenas a figura pública do PiS.
A grande vantagem do partido é que os inúmeros partidos da oposição, mais liberais e ligados ao projecto europeu, não conseguem unir o eleitorado numa contra-proposta com força eleitoral – e a cada ano que passa a ocupação dos lugares-chave por membros do PiS torna o objectivo mais difícil. A comunicação social também está manietada ou comprada.
O que as demonstrações recentes mostram é que, afinal, o país, sendo católico, não é tão maioritariamente fundamentalista como o PiS. A rejeição popular da lei anti-aborto foi o gatilho, mas atrás dela está o medo bem nítido de que a Polónia entre definitivamente num quadro anti-democrático – aquilo que agora se chama, eufemisticamente, uma “democracia iliberal”.
A EU, sempre conciliadora, ao ponto da complacência, não recorreu à sua última arma: retirar os preciosos fundos europeus, que ainda são essenciais para manter o nível de vida na Polónia.
Não se sabe o que terá sido oferecido, ou cedido, para que o Governo tenha decidido não continuar a travar a distribuição da “bazuca” contra a crise. As manifestações, as maiores desde a queda do regime comunista, por ora conseguiram que a lei anti-aborto ficasse suspensa, mas não foi retirada.
A única hipótese de retorno à democracia liberal será uma derrota eleitoral do PiS nas próximas eleições – sendo que acabou de ganhar as de 2019.
Cada dia que passa, essa probabilidade fica mais difícil.
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