Se há coisa que Cavaco Silva sempre foi exímio a gerir são as suas intervenções públicas. Cavaco não tem a fluência de Marcelo, a elegância de Jorge Sampaio ou o carisma de Mário Soares, mas soube cultivar, mais que qualquer outro, a expectativa sobre o que iria dizer. Foi ele que inventou os tabus sobre decisões que envolvem o futuro político e, por isso, quando num curto intervalo de tempo tem duas intervenções políticas em público, isso é tudo menos fruto do acaso. A primeira foi na celebração dos 30 anos do Programa Especial de Realojamento, a outra foi este sábado, na reunião dos autarcas sociais-democratas que teve lugar em Lisboa.

Ainda antes da substância, a embalagem e o rótulo. Cavaco Silva teria programado uma intervenção de 30 minutos, falou cerca de 40, num discurso pensado ao detalhe como uma espécie de estado da nação com a sua assinatura.

Sobre o rótulo, alguns analistas qualificaram a intervenção como a mais dura de que há memória por parte de um ex-presidente a um governo em exercício de funções. É verdade que Cavaco Silva compilou, num único discurso, uma longa lista de críticas negativas e de observações de pendor pejorativo, o que valida esse epíteto na intensidade. Mas não passou assim tanto tempo que não nos recordemos das críticas recorrentes – e igualmente duras – do ex-presidente Mário Soares ao governo de Pedro Passos Coelho.  E com palavras igualmente contundentes, como aquelas que Cavaco usou.

Em outubro de 2012, Soares qualificava a opção do então primeiro-ministro em colocar Vítor Gaspar a comunicar o aumento de impostos como “falta de sensibilidade e de vergonha”. Nesse mesmo mês, em entrevista a uma rádio francesa, disse que Passos Coelho e Cavaco só faziam “asneiras”. Em maio de 2013 considerou Passos Coelho "uma desilusão absoluta" como primeiro-ministro, afirmando que os dois primeiros anos de Governo PSD/CDS foram "péssimos para Portugal" e que "a melhor inversão era irem-se embora". Declarações que se somaram a intervenções públicas, como foi o caso das reuniões de 2013 na Aula Magna, precedidas por entrevistas, como a dada ao jornal “i” em que Mário Soares afirmava "antes de qualquer outra coisa, é preciso que este governo se demita e igualmente o Presidente”.

Ontem, Cavaco apelou igualmente à demissão de António Costa, mesmo que não proferindo as exatas palavras: “às vezes os primeiros-ministros, em resultado de uma reflexão sobre a situação do país, ou de um rebate de consciência, decidem apresentar a sua demissão e ter lugar eleições antecipadas. Foi isso que aconteceu em março de 2011”.

Disse que o primeiro-ministro “perdeu a autoridade e não desempenha as competências que a constituição lhe atribui”, que “a governação socialista tem sido desastrosa”, que o governo “é um vazio” e a palavra socialista “apenas um slogan”.

E partilhou os seus estados de alma, como, por exemplo, a preocupação com “a trajetória de  degradação da situação política, económica e social” e o facto de nunca ter imaginado “que a incompetência do governo socialista atingisse uma tal dimensão”.

Apelou à boa educação e à cordialidade que disse ter mantido com “nove líderes de oposição” e lamentou que hoje não seja assim. “O que hoje muito me choca é ver o debate político resvalar com frequência para a gritaria, para a falta de educação, para a linguagem grosseira e insultuosa”.

Procurou, fiel a si próprio, evidenciar receitas para a economia, revisão do sistema fiscal, recuperação das linhas de atuação sociais-democratas em áreas como a educação, saúde e habitação, e não deixou de descrever o Partido Socialista como sendo “especialista” apenas “na mentira e na propaganda e truques”.

Ou seja, Cavaco Silva 1, Mário Soares 1 no que respeita a avaliar a dureza de intervenções de ex-presidentes da República face a governos que não são da sua esfera política. Cavaco e Soares são mais parecidos neste capítulo do que Jorge Sampaio e Ramalho Eanes; o futuro o dirá de Marcelo Rebelo de Sousa.

O que é especialmente curioso é como duas figuras tão profundamente diferentes, no seu âmago e na sua história, se tornam tão próximas no que toca à utilização do seu poder de falar, que é um atributo valorizado em ex-presidentes da República, que em ambos os casos são também ex-primeiros-ministros.

Ambos se tornaram instrumentais, por moto próprio, na amplificação da voz da oposição do partido de que são originários – Soares sempre mais por conta própria, Cavaco sempre a chamar a si o papel do líder providencial do partido. Soares fez mais oposição a Passos Coelho em certa altura do que o PS; Cavaco disse este sábado de A a Z, o que Luís Montenegro ainda não tinha aproveitado para dizer quase um mês depois dos acontecimentos no Ministério das Infraestruturas, da demissão não aceite de João Galamba e da escalada de relatos rocambolescos em sede de comissão parlamentar de inquérito.

Ambos compuseram frases fortes a pensar no efeito  mediático, puxaram os galões da sua própria história, ignoraram o que lhes correu mal e douraram o que lhes correu bem. E, sintomaticamente, ambos são, nos respetivos ciclos políticos pós-presidência (no caso de Soares, face à longevidade, pós-pós presidência), homens que quiseram usar as receitas de um tempo que conheciam noutro tempo que lhes era mais estranho.

Para Mário Soares, encher a Aula Magna como expressão pública do combate político a Passos Coelho era (e foi) um passo lógico do homem que na Alameda traçou linhas vermelhas da democracia portuguesa. Mas não foi na Aula Magna que Passos Coelho – e o PSD – perderam uma parte do eleitorado que nunca mais recuperariam, nomeadamente reformados e jovens das camadas mais qualificadas. Foi na rua, mas noutras ruas, na manifestação de 15 de setembro de 2012, convocada por sabe-se lá quem ao certo e a que aderiu mais de um milhão de pessoas de quadrantes diversos unidas num mesmo protesto perante a subida da Taxa Social Única, num contexto de grave crise económica.

E, três anos depois, em 2015, Passos Coelho não perdeu as eleições mas perdeu o governo, quando um outro político, António Costa, ganhou o poder para o PS com uma estratégia que Soares nunca usara.

Cavaco Silva fala do PSD  como sendo “inequivocamente a única alternativa política credível ao poder” e dos outros partidos como anéis de Saturno. É por isso que recomenda ao líder social-democrata que não disperse “energia com outros partidos” e que não vá “a reboque de moções de censura de outros partidos que só querem ser notícia na comunicação social”.

Talvez Cavaco Silva acredite verdadeiramente que o PSD é a única alternativa, que está apenas a “8 ou 9%” de uma maioria nas intenções de votos e que os “outros partidos” só orbitam ao seu redor em busca de protagonismo. É provável que Cavaco acredite verdadeiramente que tal como a Guterres sucedeu Durão Barroso e a Sócrates sucedeu Passos Coelho, há uma inevitabilidade histórica em como Luís Montenegro (ou o líder do PSD), sucederá a António Costa e à sua “pesada herança”.

Para Cavaco Silva, a alavanca do poder continua onde se habituou  a vê-la, num centro-direita em que o PSD é hegemónico e o resto é conversa.

O problema é que é muito mais que conversa – ou, melhor dizendo, é uma conversa necessária e que faz toda a diferença. Em duas décadas, e mais aceleradamente nos últimos 10 anos, mudámos como sociedade, para o melhor e para o pior. Somos mais exigentes e menos carneiros – é por isso que o desafio ao poder não vem apenas de onde sempre veio, os partidos. E somos menos exigentes e mais carneiros também, porque nos polarizámos mais do que nunca numa sociedade de “0” e “1” em que os algoritmos das redes sociais nos transformaram, sem meio termo, sem diálogo, divididos entre os “nossos” e os “deles”, sem termos capaz de ouvir.

Há em Cavaco Silva hoje, como em Mário Soares há 10 anos, a convicção numa receita de que se considera autor e que nunca teve dúvidas de ser a melhor. No caso de Cavaco, a sua terra do “sempre” é um mundo maravilhoso onde a política era bem educada, os políticos se respeitavam num código que obviamente tinha nele o epicentro e o governo estava empenhado tão somente em prestar bons serviços à nação e na defesa dos valores sociais-democratas. Esta visão do passado importa pouco, na verdade. Como também nada acrescenta, a resposta que o Partido Socialista decidiu dar, centrando o discurso na “falta de educação”, muito ao nível do “quem diz é quem é”.

Nas palavras de Cavaco Silva, “por tudo isto que vemos ouvimos e lemos é fundamental olhar o futuro”. Seja qual for, o mundo futuro será mais diferente do que parecido com a saudosa memória que o ex-presidente e ex-primeiro-ministo tem do esplendor social-democrata dos anos 80 e 90. Entre o passado glorioso e o futuro, que todos os políticos acreditam glorioso sobre a sua direção, há um tempo presente, aquele onde se passa a vidinha de todos os dias e que é composto de mudança, como diz o poeta.

Por tudo o que vemos, ouvimos e lemos, fazer política não é ignorar o passado, mas é ter capacidade de lidar com o presente, ainda antes de olhar o futuro.