Sou homem, sou branco, sou heterossexual, cresci numa família estável, tive uma infância feliz, vivi num bairro seguro, numa casa muito confortável e, sem ter tudo, nunca me faltou nada.
Os meus pais têm educação superior, matricularam-me nas boas escolas públicas que existiam nas nossas boas áreas de residência, não precisei de trabalhar para pagar a universidade.
A maior parte dos meus colegas, muitos do quais se tornaram meus amigos, tem a minha cor de pele. Nunca me senti olhado de forma suspeita na rua, nunca nenhum desconhecido mudou de passeio ao ver-me chegar.
Na minha profissão de advogado, a maior parte das pessoas parece-se comigo. Nunca pensei não pertencer a um grupo ao qual quis pertencer.
Nunca pensei duas vezes em juntar uma fotografia a um CV, nunca fui rejeitado por nenhum senhorio por ser como sou. Nunca senti que fui julgado antes de me conhecerem por causa do meu nome.
Nunca vivi a mais de 20 minutos de autocarro do sítio onde estudei ou trabalhei.
Quando entro em lojas, sou recebido ou com simpatia ou com indiferença. Quando algum lojista anda atrás de mim, normalmente é para me impingir qualquer coisa: nunca senti que suspeitasse das minhas intenções.
Quando ligo a televisão, vejo sobretudo gente como eu. Quando estudei história, a esmagadora maioria dos “heróis” tinha a minha cor e o meu género, de Afonso Henriques, a Vasco da Gama, Salgueiro Maia. Até Jesus Cristo, cuja cor da pele é objeto de ampla discussão entre especialistas, me foi sempre apresentado como um homem branco, algumas vezes loiro e de olhos azuis. Cresci com essa confiança no protagonismo do homem branco – confiança que faz hoje parte de mim e da qual beneficio imensamente na minha profissão e vida social.
Em casa, ensinaram-me sempre a respeitar o outro, independentemente das suas características. Mas os ensinamentos da rua, da televisão, dos jornais, os ensinamentos do recreio da escola, os ensinamentos dos livros, e de tudo aquilo que me rodeou ao crescer, instalaram em mim preconceitos que rejeito racionalmente, profundamente, mas que ainda me percorrem o corpo, contra a minha vontade, e me instam a mudar de passeio se vem de lá alguém “com mau ar” (raramente gente com o “meu ar”), a afastar a vista se dois homens se beijam, a revirar os olhos e encolher os ombros, aceitando como normal ou expectável se me dizem que estes ou aqueles cometeram este ou aquele crime. É com o esforço da vontade que tento rejeitar esses impulsos, que vêm de um lugar onde eu não os pus, mas que estão lá, sem culpa de ninguém, por culpa de todos.
Se me comporto mal, se me envergonho ou embaraço, conto pelo menos com a segurança de só me estar a envergonhar a mim: as minhas condutas não são imputadas à cor da minha pele, às pessoas que amo, ou aos vizinhos do meu bairro.
Eu sinto que posso ter opiniões sobre tudo sem que me venham dizer que essas opiniões são próprias de “gente como tu”. Aos privilegiados como eu reconhece-se sempre a dignidade da sua individualidade, da sua irrepetibilidade enquanto seres humanos; os outros são Outros coletivamente.
Nunca beijei alguém, ou dei a mão a alguém, e senti que as pessoas à minha volta pararam para me olhar. Nunca fui o centro das atenções por fazer coisas normais; nunca deixei de as fazer para evitar esse desconforto.
Nunca me consideraram violento ou perigoso quando eu estava só enervado e falei alto. Quando fui eleito, ou promovido, ou escolhido, ninguém achou que fui eleito, promovido ou escolhido “por causa do politicamente correto”.
Nunca me senti nervoso ao passar um polícia sem ter razões para tal.
Todos os meus bonecos eram da minha cor, do Action Man ao He-Man a todas as centenas de soldados da Playmobil (os do Dragon Ball às vezes eram verdes ou cor-de-rosa). Os meus heróis na televisão também: o Goku, o Gohan, o Ash Ketchum, o Oliver Tsubasa, o Hércules, o Yugi-Oh, o Johnny Bravo. Até o Dartacão, que era um cão, era um cão branco que gostava da Julieta, a cadela com o maior pé de cabelo loiro da história da televisão.
Nunca me disseram que o cheiro do meu suor tinha um nome: mesmo quando, depois dos treinos, o seu cheiro era tão pungente que até a mim me incomodava.
Quando pergunto as horas a alguém na rua, respondem-me com naturalidade e sem medo que eu só lhes queira ver o relógio.
Nunca perguntei às minhas namoradas se elas já tinham dito aos pais qual era a minha cor. Nunca assumi que tinha de namorar alguém às escondidas. Nunca deixei de lhes dar a mão em público.
Eu não uso maquilhagem, mas sei que ela é fabricada e vendida a pensar no meu tom de pele.
Nunca me pararam num aeroporto, me levaram para uma sala, me deram um enxerto de pancada e me deixaram à morte.
Vivi a maior parte da minha vida encantado com a noção do mérito: a maravilhosa ideia de que este meu deslizar pela vida rumo ao conforto, ao sucesso e à segurança era produto do meu esforço, do meu trabalho, da minha inteligência. Entendia a meritocracia como o grande eldorado da civilização: uma sociedade onde cada um tem aquilo pelo qual trabalha.
Essa é uma ilusão à qual já não me permito. Desfez-se à primeira tentativa de enumerar todas as vantagens que eu tenho e outros não, e as desvantagens que outros têm, e eu não, e que se devem exclusivamente a fatores que eu não controlo, nunca controlei: a minha cor, o meu género, as pessoa pelas quais me sinto atraído, o sítio onde nasci, a família onde nasci, as pessoas que me educaram, as escolas onde me inscreveram, os livros que me compraram, as decisões que tomaram sobre a minha vida antes de eu ter idade para as tomar.
Eu falo de privilégio, porque é aquilo que eu conheço, apesar de me ser visível há pouco tempo. Não me sinto culpado por isso. Nasci com ele. Nele. Aconteceu-me e eu beneficiei dele a vida toda antes de me aperceber disso, e continuarei a beneficiar dele pela vida fora, hoje consciente de que ele ali está: colado à minha pele, à forma como eu falo, escrevo, no meu sotaque, na forma como me comporto em público e em privado.
Ser branco, ser homem, ser heterossexual, ter um contexto familiar estável: nunca tal se me sobressaiu, em circunstância alguma. Eu encaixo no meu mundo. É normal eu ter demorado tanto tempo a percebê-lo: quem é que se dá conta da ausência de perturbação? Apenas quem está habituado a ela. Nunca aquele que a tem como normal. Mas hoje percebo-o: não o posso desperceber, nem posso, em consciência, em humanidade, fingir que o ignoro.
Não peço desculpas pelo meu privilégio. Mas também não arranjo desculpas para ele. Não posso, com sinceridade, com honestidade, com justiça, alimentar essa construção fictícia do “mérito” quando conheço a minha circunstância e a circunstância dos outros.
Trabalhei mais do que muita gente, e menos do que muita gente, e acabarei, não duvido, atrás de muitos dos primeiros e à frente da maioria dos segundos. Li muito, estudei bastante, tive apenas duas ou três boas ideias, mas uma avenida cheia de oportunidades de falar sobre elas, na TV, na rádio, em jornais.
Não lhe chamo sorte, porque não é sorte: não foi o acaso que me traçou o privilégio. Não o ganhei num jogo de dados, não me calhou numa rifa. É produto de séculos de história, de guerras por poder, de sacrifícios pela paz social, de opressão, de violência, de silêncios, de segredos, de cobardia, de coragem. O meu privilégio não é sorte, porque é um resultado preciso, alcançado com intenção por aqueles que se parecem comigo e que viveram antes de mim.
Não me envergonho do meu privilégio. Não quero que se envergonhem vocês dos vossos, se os têm – e quase toda a gente tem algum privilégio, ainda que muito pouca tenha todos os que eu tenho. Não é esse o objetivo deste texto. Não me estou a flagelar, nem recomendo isso a ninguém: estou só a testemunhar.
Este é o meu privilégio. Não me envergonho dele, repito. Mas envergonhar-me-ia de não fazer nada com ele. Envergonhar-me-ia se me servisse para reforçar, de forma consciente, aproveitadora, parasitária, a minha vantagem natural, imerecida, sobre os outros. Isso mesmo: imerecida. Ninguém nasce a merecer mais ou menos que ninguém e, ainda assim, nascemos todos em partes diferentes nesse espetro do privilégio. Desse lugar onde nascemos, partimos para a vida, como se de uma corrida de obstáculos se tratasse, uns a correr os 100 metros desimpedidos, outras maratonas com areias movediças, lagos com crocodilos e alçapões no final de cada etapa. Pelo meio, milhares de milhões de percursos diferentes, uns mais difíceis do que outros, alguns aparentemente sem fim.
Só que isto não é uma corrida. Não há verdadeiramente uma competição, se todos corremos percursos diferentes. Reconheço beleza naquela ideia da minha juventude, todos a correrem por si, e no final cada um obtém o que obteve com o seu esforço, com a sua capacidade. Reconheço-lhe beleza, mas não lhe reconheço mais nada. Não partimos juntos. Partimos separados, separadíssimos. Precisamos de dar as mãos. Começando naquele que parte lá à frente de todos, que dá à mão ao segundo, ao terceiro, ao quarto, e por aí fora, até ao que está lá atrás, tão distante que eu nem sequer o vejo, aqui de onde estou. É para dar as mãos, primeiro, e depois é para puxar, com força. Desse puxão resultarão duas coisas: os que estão lá à frente vão deslizar um bocadinho cá para trás. Contudo, como têm mais força, vão certamente puxar os de trás lá para a frente, em muito maior medida. É uma troca para a qual temos de estar disponíveis.
Esta é uma imagem, uma metáfora bonitinha para um cenário dramático, mas não queria terminar este texto ao som dos violinos. A realidade faz-se de mãos dadas, sim: as mãos dadas das políticas concretas de solidariedade social, da redistribuição de riqueza, do investimento sério em educação, em habitação, em infraestruturas, em segurança, da promoção da cultura, das culturas desprivilegiadas, dos seus criadores, das suas vozes, das suas histórias.
É o que eu tenho de fazer com o meu privilégio. Sentar-me pelos meus direitos e, de seguida, quase como se fosse o mesmo gesto (mas não o sendo exatamente), levantar-me pelos direitos dos outros: talvez o derradeiro exercício do privilégio.
"Este exercício foi inspirado pelo artigo "White Privilege and Male Privilege: A Personal Account of Coming to See Correspondences Through Work in Women's Studies (1988)", de Peggy McIntosh.
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