Como foi noticiado em todo o mundo, inclusive em dez artigos no SAPO24, a detenção pelas autoridades franceses do fundador e dono da rede social Telegram, sob acusações tão diversas como pornografia infantil, tráfico de droga, branqueamento de capitais, etc. etc., causou choque e supresa mas, sobretudo, espanto.
Durov, nascido na Rússia há 39 anos, pode ser considerado o mais completo e bem sucedido nómada digital. A sua detenção — seguida de liberdade sob caução — pela Jurisdição Nacional (francesa) de Combate ao Crime Organizado, levanta uma plenitude de questões e problemas, que vai em última análise ao nunca resolvido debate sobre a responsabilidade das redes sociais na informação que veiculam. Este problema tem sido debatido inconclusivamente em todos os países que têm Internet (ou seja, todos, menos a Coreia do Norte) e, pelo menos até agora, ficado por definir.
Mas comecemos por Durov. Depois de uma carreira académica bastante convencional, em 2006 fundou na Rússia uma cópia do Facebook chamada VK ou Vkontakte, que se expandiu rapidamente até aos 350 milhões de utilizadores.
Nessa época Putin ainda não tinha solidificado completamente o seu aparato repressivo e assim a VK, que aparentemente não tinha supervisão de conteúdos, era usada tanto pelos putinistas como pelos “traidores ao serviço do estrangeiro”. Claro que este estado de libertinagem não podia durar muito e Durov primeiro foi forçado a vender a VK a investidores mais afinados com o regime, e em seguida ele próprio foi perseguido e acossado até ter de sair do país.
Instalado no Dubai, fundou outra rede social, o Telegram que não só fez um grande sucesso da Rússia como no resto do mundo — calcula-se que tenha atualmente 950 milhões de utilizadores. O Telegram também não tem supervisão aparerente e além disso nem sequer é encriptado “de ponta a ponta” - como o WattsApp - o que significa que só quem posta e quem recebe a postagem (que pode ser um grupo de até 400 pessoas) tem acesso ao conteúdo.
Esta rebaldaria fez com que o Telegram se tornasse popular com todo o tipo de pessoas, na Rússia, na Ucrânia, na Bielorrússia e em todo o mundo — ou seja, os russos usam-no para falar mal de Putin e criticar ou aplaudir a Ucrânia, os ucranianos usam-no como fonte de notícias russas sobre a situação militar e para saber o que os russos pensam, e outros operadores mais profissionais vendem drogas, partilham pornografia, espalham informações confidenciais, bajulam ou incriminam quem lhes apetece… Enfim, é uma rede sem rede de segurança. Isto sempre foi defendido abertamente por Durov, em nome da liberdade de expressão.
Todas as redes têm processos de controlo de dados, mais que não seja para não provocar as autoridades. Se funcionam… todos sabemos que não. Mas, diga-se em abono da verdade, como é que seria possível fiscalizar em tempo real milhões de postagens? A única possibilidade, não prática mas pelo menos legal, seria responsabilizar as plataformas pelo conteúdo que veiculam, monetariamente ou de outra forma. Mas estas — Zuckerberg, Musk, e todos os outros — controlam alguma coisa, o suficiente para dizer que se esforçam, e depois vêm com o argumento de que é impossível. Zuckerberg até já disse uma vez que as pessoas não fazem ideia das coisas horrorosas que os seus controladores (algoritmos ou pessoas) eliminam diariamente. Deve ser verdade.
Este imbróglio de quem é a responsabilidade do que “se lê por aí” também sido abordado de maneira diferente pelos Estados Unidos e pela Europa. Os americanos, leia-se, o Senado, não conseguiu até agora nenhuma legislação minimamente efetiva. As plataformas limitam-se a fazer uma limpeza por conta própria, ou quando são alertadas pelas autoridades. Já os europeus têm sido muito mais pró-activos, mas como a contradição liberdade/abuso é universal também não foram muito longe. Até agora têm-se ficado por legislação anti-monopolista e por responsabilizar quem posta.
Durov, tal como Elon Musk, é um libertário total. Para estes senhores, não há limites do que uma pessoa possa dizer; desde que não faça, está à vontade para propor a morte de todos os muçulmanos, o bombardeamento nuclear de Israel, para estragar a reputação do ex-namorado ou da vizinha — enfim, para dar largas ao seu fel. Doa a quem doer.
Entretanto, a situação piora. Agora são os Deepfakes. Já há inúmeros programas ao alcance de qualquer um que permitem colocar a cara duma pessoa no corpo de outra, ou num lugar menos conveniente, ou… bem a imaginação é o limite.
Também se fala em regular os Deepfakes; por enquanto, software muito especializado e dispendioso consegue detectá-los, mas em breve isso será impossível. Além disso, há aquela regra maldita que determina que uma vez algo publicado é impossível controlar onde vai parar, e por quanto tempo. Se eu escrever numa plataforma qualquer que um supermercado rouba os clientes, o supermercado pode processar-me, arruinar-me, fazer-me perder o emprego — mas não pode impedir que a desinformação que publiquei siga para o resto da via e venha a aparecer nos sítios mais inusitados.
Tudo isto a propósito de Durov. Com o dinheiro que tem, os advogados que pode contratar e os países onde é cidadão. E aliás, os serviços do Telegram têm a qualidade de tanto servir a gregos russos como a troianos ucranianos.
Muito pior, na nossa humilde opinião, é Elon Musk, que neste momento está numa luta legal no Brasil que o vai obrigar a sair do país, defende o indefensável Trump e até meteu o bedelho nos distúrbios no Reino Unido, dizendo que estava à beira de uma guerra civil.
Durov é mais paz e amor; diz que já fez mais de 100 filhos através da doação de esperma em dezenas de países e acha que as pessoas têm um futuro brilhante pela frente.
Para pessoas como ele, não tenhamos dúvidas!
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