Pôr ou não pôr o artigo — eis a questão

Pois bem: vamos dar uma pequena volta por um recanto da gramática da nossa língua. É uma viagem um pouco mais comprida do que o esperado para, por fim (prometo!), chegarmos à origem do nome do Porto...

Repare: quando falamos do Porto, não podemos deixar de usar o artigo definido. Falamos do Porto, vamos ao Porto, dizemos que o Porto é uma grande cidade. Tal acontece com mais uns quantos nomes de terras portuguesas: a Guarda, as Caldas da Rainha, a Figueira da Foz, o Barreiro, e por aí fora (há ainda alguns nomes estrangeiros em que fazemos a mesma coisa, como a Haia).

A maioria das cidades, no entanto, não leva artigo atrás: falamos de Faro, vamos a Leiria, dizemos que Lisboa é uma grande cidade. Nada de artigos. (Diga-se que há uma construção particular em que temos de usar o artigo em todos os nomes de cidades — quando queremos especificar, por exemplo, uma Lisboa de entre muitas: a Lisboa da minha infância, o Faro que eu conheci.)

Há alguma regra clara para definir que cidades levam artigo e que cidades ficam despidas? Nem por isso. Há uma certa tendência para que os nomes com uma ligação clara a um nome comum tenham o artigo: é o caso do Porto, da Figueira da Foz, da Guarda e mais uns quantos. Mas há tantas excepções... Ponte de Lima tem uma ponte lá no nome e não leva artigo (e é apenas um de muitos exemplos).

Tenhamos pena de quem aprende português em adulto: tem de decorar quais os nomes de terras que levam artigo e quais não levam. É uma das muitas arbitrariedades da nossa gramática — uma das outras arbitrariedades é saber de que género são os nomes comuns — um inglês fica sempre espantado por perceber que, para nós, uma árvore é feminina e um arbusto é masculino. Por que carga de água?...

A dificuldade em aprender uma língua é mesmo esta: não há uma razão lógica para tal, mas um estrangeiro que queira aprender a nossa língua terá de decorar que Porto leva artigo e Lisboa não (e que «Porto» é um nome masculino e «Lisboa» é um nome feminino)... A gramática tem muito de arbitrário — e todas essas arbitrariedades são óbvias para quem fala a língua desde a infância e muito pouco óbvias para quem a quer aprender já adulto. Todas as línguas são assim — as arbitrariedades é que são diferentes de idioma para idioma…

Antes de avançarmos para a origem do nome, peço que repare num último pormenor sobre o tal artigo: quando escrevemos o nome da cidade isoladamente — numa lista ou numa placa da estrada — deixamos o artigo de fora. Assim, ao viajar de Lisboa para o Porto, as placas anunciam «Porto». Não nos aparece «O Porto». A nós, parece absurdo pensar que poderia ser doutra maneira. E, no entanto, se continuarmos mais para norte e passarmos a fronteira com a Galiza, encontramos os mesmíssimos artigos nas placas da estrada: «A Coruña», «O Grove», «A Toxa»... Isto, claro, nos nomes de terras que levam o artigo — que o galego também põe o artigo numas terras e tira noutras sem pedir autorização a ninguém.

Então e a origem do nome?

A origem dos nomes das terras está, quase sempre, envolta nalgum mistério, que é uma palavra bonita para se usar quando não sabemos alguma coisa. E, de facto, é muito difícil saber por que razão alguém decidiu chamar assim e não assado àquele local e por que razão um nome pega e outro nem por isso... Na terra fértil deste desconhecimento nascem, muitas vezes, as ervas daninhas das teorias estrambólicas.

Quanto ao Porto, tudo indica ter origem na designação latina Portus Cale. Esta designação deu o nome ao país — e por isso dizemos que o Porto deu o nome a Portugal — e ainda à cidade, que tem um nome que descende da primeira parte do nome latino. Ou seja, o Porto tem um nome que descende da palavra latina «Portus», que significava, entre outras coisas, «porto» (as palavras mudam, mas nem sempre…).

Que «Porto» vem de «portus» não será surpreendente. Já será um pouco mais interessante saber que a palavra latina terá vindo da palavra proto-indo-europeia «*pertus» (o asterisco indica que é uma palavra reconstruída através do processo comparativo entre várias línguas). Este «*pertus» — uma palavra que terá sido usada há uns bons 5000 anos — significaria «passagem» e deu origem ao «portus» latino, ao «fjord» norueguês e ao «firth» do inglês (por exemplo, em «Firth of Forth»). Há mais palavras com esta origem pelas línguas indo-europeias, como, por exemplo, o «pol» persa, que quer dizer «ponte».

Ou seja: quando um iraniano fala duma ponte, usa uma palavra com a mesma origem remota do nome do Porto. As palavras do nosso mundo enredam-se de maneira muito peculiar…

O Porto noutras línguas

Andamos de viagem — começámos no artigo que pomos antes do nome, olhámos para a origem do nome e agora avançamos para as viagens que esse nome fez noutras línguas.

Comecemos pelo espanhol, onde o artigo se colou ao nome e ficou «Oporto» — um processo comparável ao que fazemos com inúmeras palavras árabes, a começar pelo nosso Algarve, que também junta o artigo à palavra original.

Já em inglês, vemos por vezes o mesmo «Oporto», mas também a versão mais próxima da portuguesa: «Porto». Uma e outra, claro está, pronunciadas à inglesa.

Estes nomes estrangeiros das cidades designam-se por «exónimos». «Londres» é o exónimo português de «London», tal como «Lisbon» e «Oporto» são exónimos ingleses das nossas duas maiores cidades. Mais uma vez, entramos no campo da arbitrariedade: há cidades com nomes em várias línguas, outras em que tal não acontece. Há, no entanto, uma tendência: dificilmente uma cidade pequena e pouco conhecida terá nomes diferentes noutras línguas. É quase uma marca de honra que outras línguas dêem nomes diferentes a uma determinada cidade — quer dizer que, em determinada época da História, o nome foi tão usado que os falantes o adaptaram à sua língua…

Olhemos de novo para o nome da cidade em inglês: será «Porto» ou «Oporto». Já o vinho, que em português leva o nome da cidade, em inglês tem um nome ligeiramente diferente: «port wine». A origem do nome é, claramente, o nome da cidade. No entanto, é uma bebida tão importante para a cultura britânica que ganhou um nome comum, em minúsculas.

E, pronto, foi uma pequena viagem a bordo do nome do Porto — que sirva de pequena homenagem a esta cidade que gosto tanto de visitar.


Marco Neves | Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. Publicou há poucas semanas a Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.