Pode dizer-se que na prática as redes sociais são salas de comunicação, seja escrita, visual ou falada. Quem está presente de forma regular nas redes sociais percebe - vamos acreditar, que quando alguém publica um conteúdo, este tanto pode ser público como apenas visto pelos seguidores do autor; noutros casos ainda, a comunicação circula entre dois participantes ou grupos restritos.
Um “post” pode permanecer eternamente no ar, ou ter uma curta durabilidade de cinco minutos. O seu tamanho também pode variar, de um tratado escrito a uma imagem animada de trinta segundos. Há de tudo, para todos os géneros e – agora já se percebeu – para várias idades. A título de exemplo, os adolescentes parecem preferir o TikTok reduzindo o Facebook ao recreio dos “velhos”. O Reddit, sendo usado por profissionais, tem um sub-público específico: adultos, investidores ou empresários. O LinkedIn serve para difusão de currículos, potenciando oportunidades de emprego, correspondendo também a uma certa faixa etária. Já o Tinder destina-se a “encontros” de pessoas presumivelmente adultas. Enfim, as redes sociais segmentaram-se segundo a miríade de interesses duma população que navega cada vez mais no ambiente digital.
Mas existe uma outra distribuição, a da esfera ideológica. Existem redes racistas, inclusivas, anarquistas ou supremacistas. Esta divisão política, que quase não existia há poucos anos, acentuou-se à medida que os "lados" se radicalizaram e sentem necessidade de comunicar com quem se identifica com a mesma linha de pensamento. Para organizar actividades, por exemplo – promover encontros, manifestações, abaixo-assinados, acções de rua.
Ou seja, enquanto “antigamente” um grupo de correligionários telefonava uns aos outros e afixava cartazes para organizar um evento, agora convoca instantaneamente os seus acólitos, numa rede “de confiança”. Onde se trocam datas, horários e palavras de ordem, e se impulsionam energias.
E assim se chega ao Parler. Provavelmente pouca gente terá ouvido falar nesta rede em Portugal, reduzindo-se apenas a uma das muitas plataformas usadas pelos radicais de direita nos Estados Unidos. Racistas, nacionalistas, anti-semitas, anti-socialistas. Foi fundada em 2018, em pleno trumpismo, e em 2020 já era a rede de preferência dos Proud Boys, Movimento Boogaloo, Atomwaffen, Qnon e outros grupos. Os fundadores, John Matze e Jared Thompson, foram financiados por Rebekah Mercer, a multimilionária conhecida por ter apoiado Steve Bannon e o site Breitbart News.
Foi através do Parler que diversos grupos e pessoas avulsas que consideram que a eleição de Joe Biden foi roubada a Donald Trump se organizaram para o ataque ao Capitólio, a 6 de Janeiro. Os participantes na plataforma discutiam abertamente as teorias descabeladas do movimento Qnon – a título de exemplo, entre outras, a de que há uma cabala de pedófilos democratas bebedores de sangue organizados para destruir Trump. Enquanto as discussões eram apenas isso, discussões, ninguém parecia muito preocupado com a existência dessa “comunidade” de teorias da conspiração, arrecadando-a ao abrigo da liberdade de expressão. Mas quando se provou que a Parler tinha sido o veículo usado para organizar a sublevação de 6 de Janeiro, as coisas mudaram de figura. A plataforma estava alojada nos servidores da Amazon e a app encontrava-se disponível nas lojas Apple e Android – imediatamente as três empresas retiraram o alojamento e as apps, liquidando a Parler instantaneamente.
Os utentes da Parler não ficaram todavia incomunicáveis; mudando-se para outras plataformas semelhantes, como a Telegram, Gab, MeWe e GreatAwakening. Há centenas destas redes sociais nas franjas da sociedade normal e foi tudo uma questão de dias até a Gab se tornar a sucessora mais bem-sucedida da Parler.
Agora, menos de um mês depois, a Parler voltou, alojada num outro fornecedor, a SkySilk, já sem a direcção de John Matze. Quanto a esta situação, as informações são contraditórias; segundo a revista digital Huffinpost, a Parler estará agora determinada a não aceitar posts “radicais”. Por outro lado, a revista digital Vice News considera que a plataforma entretanto perdeu força sendo até insultada pelos seus antigos utilizadores, não se percebendo bem porquê. Provavelmente, trata-se apenas duma manobra para escapar ao controle das autoridades (o FBI, muito provavelmente), que monitorizam minuciosamente a rede. Ao que parece, a Gab é agora a rede de preferência dos radicais descabelados.
Esta questão da Parler, vem mesmo em cima de outros acontecimentos relacionados com o poder das redes sociais. Veja-se o que está a acontecer na Austrália. O governo australiano acaba de legislar que o Facebook e a Google têm de pagar aos órgãos de comunicação social pelos conteúdos que apresentam. O Facebook recusou, retirando não só esses conteúdos, como também informações de vários organismos governamentais, úteis à população australiana. A Google, por seu lado, acedeu ao pagamento. Esta situação está a ser seguida atentamente pela União Europeia e Estados Unidos, onde se prepara legislação semelhante.
Paralelamente, os generais de Myanmar desligaram as redes sociais para impedir que as pessoas se pudessem organizar em protestos contra o golpe de Estado. Como já tinham feito os governos de muitos outros países, como a Bielorrússia, a Turquia e a Índia, para falar apenas de alguns.
Em termos gerais, as redes sociais passaram rapidamente de um mero entretenimento para uma questão económica e política de grandes proporções. Porque é que o Parler não pode dizer que a Hilary Clinton é pedófila bebedora de sangue, mas em contas de WhatsApp de Myanmar se pode afirmar que os generais torturam crianças? A resposta assenta na diferença entre a mentira e a verdade. O problema é que a definição do que é falso ou verdadeiro está cada vez mais encapsulada por facções e os diferentes lados da barricada estão pouco ou nada interessados em escrutinar a verdade e a mentira. Para os seguidores do Parler, é verdade que existe um complot do “deep state” para acabar com a liberdade nos Estados Unidos. Para os assinantes do Twitter na Bielorrússia, é verdade que Luckachenko gere uma rede de prisões com torturas horríveis.
Quem é que decide o que é verdade ou mentira? O Facebook acabou de criar uma Comissão de especialistas independentes à empresa para tomar algumas decisões nesta área. Mas os interesses do Facebook serão, realmente, a equidade, ou a utilização maximizada dos dados dos utilizadores?
Os frequentadores da Parler decidiram atacar o o edifício-símbolo da Democracia para mostrar que o “sistema” estava a precisar de reforma. A 6 de Janeiro não conseguiram, mas se isso não servir de alerta para o que se passa nesta rede e noutras, o que servirá?
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