1. Quero Joacine Katar Moreira no parlamento do meu país, do nosso país, país de todos os que nasceram nele, vivem nele, o escolhem. Não quero no parlamento do nosso país deputados que combatem quem combate o racismo, em vez de combaterem o racismo. Um parlamento que, depois de uma semana em que uma família negra, e em seguida jovens negros, foram agredidos e dispersos a balas de borracha, aprova um voto sem uma palavra de solidariedade com estas pessoas, como se elas não fossem portuguesas, ou residentes em Portugal. Apresentado pelo PSD e pelo CDS, o texto condena “todo o tipo de violência”, mas apenas cita “episódios de inaceitável violência, contra agentes da autoridade, cidadãos, uma esquadra da PSP, vários automóveis e propriedade pública e privada”, considerando “absolutamente inaceitável” a violência “contra agentes da autoridade que, em nome do Estado, agem para a protecção de todos os portugueses e dos seus bens”.
Nenhuma palavra para os negros agredidos, dispersos à bala de borracha, para as centenas de milhares (quantos ao certo???) de negros em Portugal, cidadãos ou residentes, boa parte dos quais vivem diariamente violências que estes eleitos nunca viverão. E que nunca correram o risco de viver por um simples facto: são brancos.

Isto não é uma demonização dos brancos, triste ter de o dizer, mas a insídia das distorções a isso obriga, neste momento. Isto significa apenas que os portugueses brancos eleitos para o parlamento precisam de ter a noção de que, pelo simples facto de serem brancos, são pessoas privilegiadas, estão a salvo de muito à partida, e que parte do seu trabalho, do trabalho para que foram eleitos e são pagos, é contribuir para combater isso: a infâmia do racismo institucional e instituído. Um racismo organicamente ligado à história de Portugal, a tudo o que Portugal fez desde que as naus começaram a descer para a costa africana, no século XV.

Esta é uma responsabilidade de todos os políticos em Portugal, parlamento, governo, presidente da República. A grande maioria falhou-a nestes últimos dias. É urgente que tomem consciência disso, se querem travar uma explosão. Se houver uma generalização da violência, ela não terá vindo de Mamadou Ba (assessor do Bloco de Esquerda) ter desabafado no seu mural de Facebook que aquele tipo de acção policial violenta, primeiro no Bairro da Jamaica, depois na Avenida da Liberdade, era uma bosta — foi isso que ele disse, não que a polícia em geral era uma bosta. Nem terá vindo de Joana Mortágua (deputada do Bloco) ter partilhado o vídeo do Jamaica. Essa possível revolta virá da violência que as pessoas negras vivem todos os dias, e os responsáveis políticos e institucionais portugueses continuam a ignorar, aliviados por tanta gente viver calada. Quem foi eleito na democracia portuguesa, e pela democracia, tem de encarar a população negra agora, já: ouvir, entender, agir com ela. E encarar as raízes, históricas e bem incrustadas, do que a faz viver como tem vivido.

2. Entre as poucas excepções de eleitos que perceberam o que estava em causa, cito de novo Joana Mortágua. Quanto mais vejo gente a responsabilizá-la pela violência, mais me parece essencial repetir: ela partilhou o que todos precisam de ver e ouvir, o que devia obrigar todos a reflectirem: agradeçam-lhe. Espantoso como quem não quer pensar muito continua a matar o mensageiro. De facto, dá muito menos trabalho, senhores deputados, muito menos trabalho arrumar o mensageiro do que pensar. E cito de novo Francisco Assis, excepção no PS, que teve a decência de se solidarizar com ela, e de compreender a emergência da revolta negra.

Vi depois José Soeiro, deputado do Bloco, na manifestação anti-racista frente à Câmara do Seixal, ontem. Ainda bem. Quanto teriam aprendido os ilustres eleitos a quem nem ocorreu lá pôr os pés. Quanto teriam para aprender, se não fossem, muitos deles, contumazes casos perdidos. Mas para os que não são, recomendo altamente algumas viagens, em diferentes momentos do dia, da noite e da semana, pela Linha de Sintra/Linha da Azambuja, por Loures, pela Margem Sul. Há uma África que é Portugal, e que os eleitos portugueses não conhecem. Não é fácil ela acordar para a política dentro do sistema, porque toda essa população está ocupada a sobreviver, a conseguir pagar as contas. Assim se mantêm as elites nas suas bolhas, sabendo que os pobres, os negros, estão demasiado esgotados, a esperar por comboios e barcos, a acordar de madrugada e voltar de madrugada, a tentar dar de comer aos filhos, e levá-los em transportes lotados à escola, ao centro de saúde. Sim, quando estamos a tentar mantermo-nos vivos é difícil pensar em política. Mas, justamente, esse é um problema essencial da política. Enquanto a política não tiver representantes destas pessoas, destas vozes, desta vida, este país será, de facto, um país para brancos. E este país não é para brancos nem dos brancos, é de todos.

3. Leva horas, literalmente, a ir do extremo da Linha de Sintra para a Câmara do Seixal de transportes públicos. Se o tivesse feito, quando acabei de escrever a crónica de ontem, teria chegado ao Seixal depois de a manifestação acabar. Mas, mesmo tendo arranjado forma de ir de carro (que não tenho nem guio), levei uma hora a chegar, e perdi o começo, quando Joacine Katar Moreira falou.

Ouvi gente muito inspiradora na hora e tal seguinte. Ouvi, por exemplo, uma jovem de 25 anos (ela prefere não ser identificada), que mora numa freguesia da Amadora, repetir muitas vezes a pergunta: como é possível? Como é possível que ela, nascida negra em Portugal, tenha ouvido mais jovem coisas como: escreves tão bem português. “E eu era tão tapada que fiquei contente!” Como é possível que ela, nascida negra em Portugal, descendente de cabo-verdianos, todos os anos tivesse de ir à embaixada de Cabo Verde (onde nunca tinha estado) para renovar a matrícula da escola? Como é possível que tivesse de apresentar registo criminal de Cabo Verde se nunca lá pusera os pés? E como é possível, perante isto, que lhe digam que não há racismo institucional? Eu ouvi, e os 200 que estávamos diante da Câmara do Seixal ouvimos, esta jovem dizer isto, e dizer que é ao Estado português que tem de exigir contas. É mesmo, ao Estado, quer dizer aos seus representantes.

E depois dela ouvi mais raparigas, e rapazes, de vários bairros da periferia de Lisboa. E vários falaram de como os pais e avós ajudaram a fazer o 25 de Abril nas matas africanas, e agora os filhos e netos pedem licença para existir na democracia portuguesa. Sim, os pais e avós deles ajudaram a fazer a nossa democracia, nossa de todos. Não foram com certeza os pais e avós de vários políticos que hoje estão no parlamento, no governo, na presidência. Centenas de milhares de africanos deram o corpo, e muitas vezes a vida, à luta pela independência, que em boa parte determinou o 25 de Abril. Honrem isso, políticos portugueses. Honrem os antepassados dos porões, os avós e os pais das matas africanas que deram a vida pela democracia de todos nós. Honrem a cada vez mais extensa população negra portuguesa. Somos todos descendentes de imigrantes, em algum momento: todos.

4. Felizmente houve quem filmasse a intervenção de Joacine, no começo da manifestação. E por isso, ao voltar do Seixal, pude comprovar mais uma vez a qualidade e a força da sua voz, do seu pensamento. Nascida na Guiné-Bissau em 1982, Joacine é cidadã e eleitora portuguesa, doutora em Estudos Africanos, depois de se ter licenciado em História, e feito um mestrado em Estudos do Desenvolvimento. Fundou recentemente o INMUNE, Instituto da Mulher Negra em Portugal, para lutar contra a invisibilidade das mulheres negras. A altura a que esta mulher está, comparada com a rasura que tanto vejo no parlamento. E como fiquei feliz de a ouvir dizer que é preciso saltar para a participação política. Que a população negra tem de se envolver, de se articular, de se organizar, de entrar nas instituições.

Nos anos em que morei no Brasil, 2010-2014, vi esta passagem acontecer. Jovens negros e sobretudo jovens negras, que nunca tinham querido entrar no sistema, porque se habituaram a ver o sistema — corporizado numa violenta polícia militar, herdeira do sistema autoritário, por sua vez herdeiro da colónia esclavagista — a meter-lhes o pé na porta e no corpo. O sistema sempre os excluiu, portanto elas e eles tinham todas as dúvidas sobre entrar nele, para o mudar por dentro. E ao longo do tempo, sobretudo neste último ano, vi uma nova geração de grandes mulheres negras serem eleitas. Os tempos são mais duros do que nunca, mas mais do que nunca há caras e corpos negros representando os negros.
É isso que tem de acontecer também em Portugal. Não quer dizer que só os negros podem falar do racismo, nem pelos negros, com os negros. Não acredito nisso. Todos podemos e devemos falar por todos e com todos. Mas justamente por isso é preciso que vozes, e caras, e corpos negros cheguem ao parlamento, às instituições. Há gente de grande qualidade que pode fazer muita diferença, não só na vida da população negra: na qualidade da democracia portuguesa. Na vida de todos nós. Porque é disso que estamos a falar. Do país de todos, com todos. Da nossa democracia. Não haverá democracia sem a população negra do nosso país. Isto é uma emergência nacional. Pensem nisso.