Queria aqui participar um furto que ocorreu algures nos últimos anos. Não sei ao certo se deva ser classificado como furto ou roubo, já que houve ameaças e violência envolvidas. Também pode dar-se o caso de ser apenas um sequestro e de quem está na posse do que roubou o fazer apenas para obter contrapartidas dos seus donos originais. Falo, claro, do politicamente incorrecto. O que era antes uma expressão para caracterizar um discurso honesto, sem paninhos quentes e sem os subterfúgios da política que tem por base uma retórica cautelosa e desonesta para angariar o maior número de votos, foi agora roubado por gente palerma.

De repente, sem sabermos como, um discurso abertamente racista ou xenófobo é ser-se politicamente incorrecto. Não, é ser-se apenas um ser humano rançoso. Reparem na definição da Wikipedia “O discurso politicamente incorreto é uma forma de expressão que procura banalizar os preconceitos sociais sem receios de nenhuma ordem. Apesar de ser expressão de simples preconceitos quotidianos, o politicamente incorreto foi apropriado pela direita para opor-se à esquerda e à agenda das minorias.”

O quê!? Se está na Wikipedia é porque é verdade e está consumado o sequestro do que outrora foi usado por pessoas que não tinham medo de dizer o que pensavam e que desafiavam o poder vigente, apontando verdades incómodas. Isto deve ter acontecido quando uma parte da esquerda decidiu fazer algo que tanto critica que foi apropriar-se de algo que é dos outros e, neste caso, foi do discurso politicamente correcto, levando-o a limites do absurdo nunca antes vistos. O politicamente correcto, um fungo que crescia mais em ambiente conservador e religioso, foi mutando e começando a dar-se também em ambientes mais hippies e com cheiro a canábis, e deu-se uma inversão dos polos que nem os Maias previram.

Desde sempre que o politicamente incorrecto era adjectivo para caracterizar humoristas que não tinham um humor limpinho e familiar. O George Carlin era politicamente incorrecto. O Louis CK ainda é. O Bill Maher até teve um programa com esse nome durante anos. Será que todos eles procuravam banalizar preconceitos e retirar direitos às minorias? Não me parece, pelo contrário, sempre estiveram do lado delas e se esforçaram para no meio das piadas desmistificar estereótipos. No entanto, com esta mudança de paradigma, para estar do lado do politicamente incorrecto temos de dividir balneário com abéculas. De repente, os seguintes diálogos começaram a ser comuns:
- Eu não acho que os pretos sejam inferiores aos brancos — diz o sujeito A.
- Lá estás tu a ser politicamente correcto… — responde o sujeito B.

Ou:

- Eu acho que há ciganos bons e ciganos maus, não acho que devam ser todos queimados na fogueira. — diz o sujeito A.
- Lá estás tu a ser politicamente correcto… — responde o sujeito B.

Não, não há aqui nada de politicamente correcto, vejo apenas alguém decente, que deveria ser a norma da sociedade, a conversar com um mentecapto racista. O sujeito A apenas seria politicamente correcto se estivesse a dizer aquilo sem o sentir, apenas por medo de represálias. Certo que haverá esses casos, mas, pasmem-se: dá mesmo para não ser racista nem xenófobo nem homofóbico sem ser a fingir, logo, não tem nada a ver com politicamente correcto ou incorrecto. É só uma questão de educação e civismo.

Do mesmo modo, a Maria Vieira fazer um disclaimer, antes de discursar, avisando que vai ser politicamente incorrecta, é irrelevante, até porque ela está a dirigir-se a uma audiência que concorda com tudo o que ela diz, por mais merda que ela ou o marido digam, portanto ela não está a ser incorrecta, pois não está a arriscar ofender. Podendo parecer um paradoxo, ela estaria apenas a ser politicamente incorrecta se não acreditasse em nada do que está a dizer e apenas o fizesse por questões populistas ou para não levar um piparote na moleirinha do marido quando chegasse a casa.

Nesse prisma, o André Ventura poderá ser politicamente incorrecto, pois pode estar apenas a dizer aquilo que diz para ter votos e, quem sabe, para não levar do marido da Maria Vieira. Do mesmo modo que muita gente de esquerda é politicamente correcta ao criticar o Ventura, mas depois era incapaz de dar trabalho a um cigano. E eu que disparei para todos os lados agora de repente? Até ficam todos baralhados dos olhos! Sou comuna ou fascista? Prefiro o Hitler ou o Estaline? Pasmem-se outra vez: dá para não ser nem um nem outro e achar que ambos eram bestas. Juro.

Os bons humoristas sempre foram considerados politicamente incorrectos, não por perpetuarem preconceitos, mas por irem contra o status quo e por dizerem verdades que poucos ousavam dizer, com piada. Hoje, o politicamente incorrecto também é usado por aprendizes de humorista que se escudam na capa dessa irreverência para dizer coisas com o intuito apenas de chocar e não de fazer rir. São legítimas na mesma, atenção, liberdade de expressão acima de tudo, mas também se aplica aqui o paradoxo: se te esforças a ser politicamente incorrecto só para ter reacções, acabas por estar a ser politicamente correcto.

Sugiro, por isso, uma mudança de expressão para “socialmente correcto” e “justamente correcto”. Devolvam o politicamente incorrecto aos seus donos, se faz favor.

Para ver: The Hater