Fria, pragmática, guardiã da ortodoxia fiscal e do dogma neoliberal na Europa, Merkel tornou-se, na última dúzia de anos, a imagem do papel hegemónico da Alemanha. Não é mulher para o espetáculo de confrontos, aparece com estilo político de cultura mandona, talvez mesmo autoritária. Fala pouco, não gasta tempo a procurar compromissos, segue o que decide sem esperar por outros: depois de Fukushima, fechou centrais nucleares, deixando os Verdes a seco; definiu o salário mínimo, antecipando-se ao SPD; fez passar o casamento homossexual, ladeando oposições dentro da sua CDU. É uma líder da prudência.
Merkel sai desafiada destas eleições em que a Alternative fur Deutschland (AfD) é o caso. Um partido que desperta velhos fantasmas com o seu discurso racista anti-imigrantes, anti-islão e também anti-Euro irrompe no parlamento de Berlim com à volta de 13% dos votos, que lhe dão mais de 90 deputados. Nunca um partido ultra teve voz assim no parlamento da Alemanha depois de Hitler.
A AfD vai usar o Bundestag como tribuna com grande eco. Vai contribuir para degradar o debate político, até aqui muito polido. É uma experiência inédita na Alemanha pós-1949. É uma nova versão do caso da Frente Nacional (FN) francesa. Tal como a FN, a AfD é um partido com a turbulência de divisões internas: a fação menos ultra, agregada em torno de Frauke Petry, tem grandes divergências estratégicas com a ala radical encabeçada por Alexander Gauland.
Quando foi preciso, a França republicana mobilizou-se para travar a FN. Agora, a Alemanha democrática vai unir-se para isolar a AfD.
É bem possível que esta onda da AfD faça levantar em Merkel o ímpeto para, com coragem, enfrentar o mal-estar na origem da onda populista de extrema-direita e, desembaraçada das necessidades para a reeleição, passar da prática prudente, rigorosa e discreta para a audácia de uma liderança da Europa que possa mobilizar os cidadãos com o retorno a algo que possa aparecer como um ideal. É uma oportunidade para a gestora exigente emergir como mulher de Estado.
O resultado destas eleições também vai certamente levar o muito derrotado SPD a refletir sobre a sua crise de programa político, que não consegue aparecer como alternativa. A velha social-democracia alemã, impulsionada por Brandt, assentou a sua credibilidade na despesa pública para sustentar o bem-estar dos cidadãos. Em tempos de restrições orçamentais, este discurso não passa. A tradicional social-democracia europeia está confrontada com a conveniência de renovar o programa.
Vale ver:
Nesta reportagem no The New York Times, como a esperança esbarra no ódio, na Alemanha.
Fotografias que marcam e mudam a história.
Uma primeira página escolhida hoje.
Comentários