Um deles é achar que haverá sempre alturas mais entusiasmantes para falar sobre o assunto — e, mesmo agora que assistimos à maior derrota do governo britânico, e até mesmo agora que as soluções se entaramelam até ficarem estranguladas, ainda assim considero que o pico de dramatismo com este tema está por vir. O outro receio que me tem impedido de alongar-me sobre o Brexit tem que ver com a natureza das coisas: sou tendencialmente avesso ao Brexit, mas ainda mais avesso a partilhar opiniões com o inenarrável Jeremy Corbyn. É um impasse tramado. Ele que deixe de ser contra, para eu poder ser do contra.

Apesar de todos os meus pruridos com o corbynismo, admito vir a ficar mais vezes nessa barricada, ainda que não seja por questões estritamente ideológicas. Encontro-me assim por causa do impasse absurdo onde o Brexit mergulha actualmente o Reino Unido, e porque o plano B de May se revelou só mais um esticão no nó cego do processo. Ora, Corbyn, com aquele ar de marinheiro dos douradinhos, parece-me francamente ter dedos mais hábeis para afrouxar as cordas neste momento.

Na segunda-feira, Theresa May apresentou o seu novo plano perante a Câmara dos Comuns, sendo que a palavra "novo" é aqui usada com generosidade extrema. Isto só agudiza a aura encurralada da Prime Minister. May parece estar limitada a escavar o túnel de saída com uma colher de Epá, e essa diligência confirma a primeira-ministra como a grande figura patética (no sentido grego triste, não no sentido "pateta") desta mudança de década. Não lhe censuro qualquer casmurrice porque, para todos os efeitos, ela herdou o resultado dum referendo e herdou uma decisão política estrutural que implicam casmurrice. Por isso é que, neste momento, os meus olhos se voltam para Corbyn – que nada herdou, e cuja costumeira lata (tantas vezes inconsequente) pode ser o que os britânicos precisam.

 Não estou, de forma alguma, a promover Jeremy Corbyn como a melhor hipótese para substituir May no cargo; até me deu um arrepio (dos desagradáveis) só de pensar nisso. Onde me junto ao trabalhista é nesta ideia, não tão descabida quanto possa parecer, de abrir portas a um segundo referendo.

Tenho consciência das implicações, das contrariedades e dos precedentes que o conceito "repetir um referendo" implicam. Mas há, neste caso específico, algumas justificações e outros tantos equívocos que me impedem de descartar a ideia. Vou tentar rapidamente elencar essas razões, mesmo até algumas muito básicas.

Primeiro, uma desmistificação democrática. Reitero que estou ciente das implicações dum novo referendo, mas nem assim me curvo a este equívoco grosseiro: dizer que um novo referendo era desrespeitar a vontade expressa dum povo. A "vontade expressa dum povo" ser instrumento de desrespeito pela vontade do mesmo povo é, no mínimo, absurdo. Um segundo referendo, neste caso, constituiria a consulta actualizada às vontades britânicas, e o termo "actualizado" é de assaz importância, porque tem sido óbvio que Reino Unido está incomparavelmente mais ciente das implicações do assunto do que estava em Junho de 2016. Talvez até tenha havido maior mudança de consciência sobre o assunto nos últimos 3 anos do que tinha havido nos 41 anteriores – data da primeira consulta sobre a permanência numa comunidade económica europeia.

Notem que a defesa dum novo referendo não é apelar à capitulação do Brexit. Os resultados poderiam ser os mesmos de há 3 anos, só que agora estariam muito mais inequívocos. Compreendo o risco do precedente; compreendo que a proposta duma nova consulta popular possa abrir portas a inúmeras novas consultas - as necessárias até que se chegue a outro resultado. Agora, não só esse risco é pouco provável (faço fé no bom senso dos britânicos, e nalgum decoro político que os caracteriza) como o risco em si não seria assim tão monstruoso. Sucessivos referendos sobre o assunto, ainda que incentivados sempre pela mesma facção, não deixam de ser consultas democráticas a um povo livre. A democracia dificilmente é um atentado à democracia.

Segundo ponto, trago uma razão histórica que ajuda a justificar novo referendo - razão histórica que aponta para o futuro, não para o passado. No final de 2016, foi impossível não equiparar a surpresa dos resultados na consulta britânica com a surpresa nas eleições americanas. Meteu-se tudo no mesmo saco, e nem sempre injustamente. Abordaram-se ambos os casos como erupções de uma única patologia, e os sintomas não eram bonitos: envolviam populismos, desinformação, xenofobia e interferência russa. Para um inglês comum – seja ele um leal súbdito da rainha, seja ele um devoto da independência e liberdade, seja ele as duas coisas – não haverá algo mais vexante do que perceber que, para a História, o acontecimento nacional de maior importância no séc. XXI está contaminado por intromissões e espíritos de época pouco recomendáveis.

Não estou a advogar que a opção do "Brexit" seja ela própria "xenófoba e populista", nem sequer estou agora a afirmar que é má; mas a análise aos resultados do referendo, quer queiramos quer não, quer seja justo ou injusto, ficará historicamente marcada por alguma dúvida. Poucas coisas ofenderão mais o orgulho britânico do que essa ideia latente de terem sido fantoches duma péssima tendência global; um novo referendo poderia muito bem revelar-se o tira-teimas para a posteridade.

Finalmente, não trago tanto uma razão para haver novo referendo, mas sim uma tremenda decepção com os argumentos que contrariam esse referendo. Theresa May e o seu séquito têm disparado num alarmismo que faz Thatcher dar voltas na campa, e faz o fantasma de Churchil perder o apetite. Alegam motivos de "coesão social", e prenunciam a violência dos ofendidos, como motivo essencial para evitar nova consulta sobre o Brexit. Não sei se aqui é pior a covardia política se a desonestidade intelectual, se a imoralidade na junção de ambos. Já era mau este bloqueio de uma solução por se temerem represálias, mas tudo piora quando a violência fica legitimada. É como quem diz: se os brexiters começarem a queimar carros e bater em pessoas, a culpa é nossa que os afrontámos com processos democráticos.

As ameaças de morte, ou promessas de violência para com os "remainers" têm sido uma constante desde 2016. Em vez de querer cortar o mal pela raiz, May está cortar a raiz pelo mal, e a dar coro a uma cautela absolutamente absurda. Nem é negociar com terroristas, é pior, é justificá-los. A primeira-ministra afasta a hipótese dum segundo referendo e fá-lo sob coacção – que terrível entrada nos anais da história britânica. E tudo vai mal quando até Corbyn me parece menos mal.