O Sara Ocidental, território rico em fosfatos, ferro, petróleo e gás, foi abandonado pela Espanha e ocupado pelo Reino de Marrocos em 1975. Foi o mesmo ano em que o território de Timor-Leste, negligenciado por Portugal, então na grande convulsão política revolucionária, foi invadido e ocupado pela Indonésia.

A história anterior de Portugal com Timor era marcada pelo abandono que alguns tentam explicar através do pobre argumento da distância geográfica. Em 1942, no decurso da II Grande Guerra, tropas japonesas invadiram Timor — que era território português. A resistência portuguesa a essa invasão foi a de um punhado de generosos combatentes – como o tenente Pires, encarregado português em Baucau – que fora de qualquer enquadramento do Estado português se juntaram a patriotas timorenses e a um batalhão australiano (a Austrália sabia que Timor era o último muro antes de os japoneses lá chegarem) para travar o avanço do Japão alinhado com a Alemanha de Hitler. Isto foi em 1942.

Em 1975 o território de Timor-Leste voltou a ser invadido, desta vez pela Indonésia. Djacarta ocupou o vazio deixado por Lisboa naquele tempo em que a tensão política em Portugal era de confronto máximo entre revolucionários e moderados e em que na complexa agenda da descolonização Timor pareceu uma irrelevância.

De facto, naquele novembro de 75 teve início a brutal e repressiva invasão indonésia de Timor. Portugal denunciou na ONU esta agressão indonésia, mas a diplomacia portuguesa foi impotente para reverter o quadro.

Nos anos 80, a questão de Timor passou a estar nos discursos internacionais dos presidentes de Portugal. Mário Soares incluiu Timor em todos os discursos perante outros chefes de Estado. Mas nada evoluía e a Indonésia continuava a tentar absorver Timor, apesar de tenaz resistência local.

Em 12 de novembro de 1991 aconteceu o sangrento massacre no cemitério de Santa Cruz, em Dili. Tropas indonésias abriram fogo de alta intensidade sobre os cerca de dois mil timorenses que participavam na romagem à sepultura de Sebastião Gomes, um jovem da resistência abatido uma semana antes. Está contado que ali, em volta do cemitério, 271 timorenses foram mortos pelos disparos da tropa indonésia. Umas dezenas mais vieram a falecer nos dias seguintes.

Este massacre mudou tudo para o destino de Timor. A câmara de filmar do recém-falecido repórter Max Stahl captou e gravou tudo. Estas imagens passaram em ecrãs de todo o mundo. Toda a gente ficou a saber o que era a crueldade indonésia em Timor.

Caiu o muro de silêncio que antes cobria a questão timorense. Em 96 o Nobel da Paz foi para a luta de Timor através de José Ramos Horta e do bispo Ximenes Belo.

Intensificaram-se as negociações diplomáticas na sede da ONU, entre Portugal e a Indonésia, com sucessivas rondas. Na primavera de 99, Jaime Gama arrancou do indonésio Ali Alatas o acordo para consulta ao povo timorense sobre o destino que queria. Em agosto os timorenses, em referendo, votaram de modo maciço pela independência, que foi proclamada vai agora fazer 20 anos, em 20 de maio de 2002. Então o povo de Portugal mobilizou-se de modo extraordinário em apoio ao povo de Timor.

O referendo é o que falta ao Sara Ocidental, no paralelo com Timor-Leste.

A Espanha de 1974, no ocaso de Franco e quando fervilhavam as emoções pela revolução portuguesa com a descolonização a avançar, chegou a propor um referendo no ano seguinte no Sara Ocidental. Este cenário surgiu meses depois de ter nascido a Frente Polisario a agregar os movimentos de libertação do Sara Ocidental nascidos nos anos 60.

Mas o Reino de Marrocos antecipou-se à proposta espanhola de referendo. Em 1975 entrou com força militar no Sara Ocidental com a intenção de impedir o referendo. A Espanha, com o ditador Franco em agonia, ficou de braços cruzados e o rei Hassan II de Marrocos foi ainda mais longe: desencadeou a “marcha verde” de 300 mil marroquinos que entraram pelo Sara Ocidental, com unidades militares camufladas dentro dessa marcha.

Em 76, a Espanha em transição democrática retirou-se da antiga colónia no Sara Ocidental e remeteu a questão para a ONU.

Ao fim de 15 anos, a ONU decidiu intervir: a maioria das nações aprovou a realização de referendo no Sara Ocidental sobre a autodeterminação do território. Foi mesmo criada a MINURSO, missão militar da ONU para a realização do referendo no Sara Ocidental, que foi marcado para 1992.

Estamos em 2022, passaram 30 anos. Marrocos arranjou sempre pretexto para que o referendo não se concretizasse. O que avançou foi uma guerra de escaramuças entre Marrocos e a Frente Polisário.

Mas a ideia de referendo foi sempre mantida pela ONU e apoiada pela Espanha, antiga potência colonial. Porém, esta posição espanhola nunca foi muito vigorosa, com obvia intenção de não irritar o vizinho do sul em cujo território estão os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla.

Marrocos apareceu com uma proposta para substituir o referendo: oferece ampla autonomia ao Sara Ocidental, mas sob soberania marroquina. Mas a ONU, com a Espanha, continuou a insistir no referendo.

Em dezembro de 2020, Donald Trump nos últimos dias de mandato, apostado em deixar como herança a promoção da aproximação entre Israel e alguns países árabes, jogou com Marrocos: os Estados Unidos reconheceriam a soberania marroquina sobre o Sara Ocidental desde que Marrocos estabelecesse relações com Israel. Foi o que aconteceu em tempo relâmpago.

Mas na ONU insistia-se em referendo no Sara Ocidental e essa era também a posição espanhola.

O Reino de Marrocos passou a usar outra arma: facilitar a passagem de migrantes para Espanha, quer através do Mediterrâneo, quer para as Canárias. Criou assim forte pressão sobre o governo de Madrid.

Um episódio precipitou os acontecimentos já neste março. No começo do mês, milhares de migrantes africanos abeiraram-se da fronteira de Melilla, com evidente consentimento da polícia marroquina – que antes os barrava alguns quilómetros antes.

Pedro Sánchez, presidente do governo de Espanha, percebeu a advertência que Marrocos lhe dirigia. Nesses dias um enviado de Washington passou por Madrid, Argel e Rabat.

Em 18 de março, a casa real de Marrocos deu a conhecer o texto de uma carta enviada pelo presidente do governo de Espanha ao rei de Marrocos em que é reconhecida a proposta marroquina de autonomia do Sara Ocidental sob soberania marroquina como “a base mais séria, credível e realista para resolução do conflito”.

O presidente do governo de Espanha decidiu uma reviravolta na posição de Madrid em relação ao Sara Ocidental. Fê-lo sem consultar a oposição e até os parceiros Podemos no governo.

Depois de 30 anos a apostar oficialmente pelo referendo de autodeterminação conforme as resoluções das Nações Unidas, Madrid deixa cair o povo saraui e passa a defender que este deve conformar-se com uma autonomia dentro de Marrocos.

Os compromissos assumidos por sucessivos governos de Espanha com a nação frágil que tem sofrido a hegemonia autoritária de Marrocos são sepultados de modo arbitrário por interesses de circunstância.

Após décadas de promessas baseadas na justa doutrina da descolonização, agora mandam os sarauis deixar a fila de espera e que esqueçam a aspiração de Estado próprio.

Também sobra, para além do moralmente insustentável virar de costas ao povo do Sara Ocidental, um sério problema geopolítico: a Argélia é a primeira aliada da Frente Polisário e é rival de Marrocos. A Argélia é a origem de muito do gás natural que entra por Espanha para abastecer toda a Península Ibérica.

Está para se ver se a vontade espanhola de satisfazer Marrocos não irrita a Argélia ao ponto de fazer disparar o preço na fatura ou mesmo fechar a torneira.