And I miss you

Like the deserts miss the rain

Juntam-se estes dois versos e, de imediato, atiça-se a memória de boa parte das pessoas que passaram por uma coisa chamada “anos 90”: o momento em que, na discoteca, a canção surgia, batida house e o lamento da voz de Tracey Thorn; as rádios, dia após dia, a recuperá-la como banda-sonora para afazeres caseiros, lides de escritório, exercícios de ginásio; o karaoke em pubs no meio do Mediterrâneo, que não escapavam incólumes; a simples escuta pessoal, virtude do facto de o single ter vendido mais de 3 milhões de cópias por todo o mundo. E isto desde 1995, quando as guitarras, via grunge (antes) e via britpop (depois) eram quem mais ordenava. 

'Missing' é uma daquelas canções que leva muitos a lembrarem-se do sítio exato em que estavam quando a ouviram pela primeira vez, e a culpa é, também, dos versos supracitados. “Sinto a tua falta como os desertos sentem falta da chuva”? Poucas vezes a música de dança foi assim, tão poética, tão capaz de nos levar a outros campos emocionais que não o do hedonismo puro e duro. Em 2013, a “Complex” disse dela que era uma das canções que davam bom nome ao género. No ano passado, a “Pitchfork” incluiu-a numa lista das melhores canções dos nineties. E os próprios Everything But The Girl pegaram nesse verso para dar nome a uma compilação de 2002, onde ela ali estava, brilhando ao lado de outros grandes temas de um grupo cuja maior ambição era a de dominar o mundo através do seu “minimalismo jazz” e que acabou a fazer, apenas, grandes canções pop. Para que é que alguém haveria de querer dominar o mundo, no fim de contas?

E, no entanto, com todos estes elogios e mais alguns, a população em geral tende a esquecer-se – ou não sabe sequer – que esta versão de 'Missing' que se tornou num êxito planetário nem sequer é a versão original da canção, e sim uma remistura de Todd Terry, produtor norte-americano que juntou os sons de Nova Iorque ao sentimento inglês. Pouco antes, em 1994, 'Missing' tinha feito parte de 'Amplified Heart', a batida eletrónica era uma cowbell, os sintetizadores os sons melancólicos de uma guitarra acústica. Foi a remistura de Terry que levou “Amplified Heart” e os Everything But The Girl aos lugares cimeiros das tabelas da pop e que, por arrasto, os levou também a um hiato de 22 anos: de repente, tudo se tornou demasiado avassalador para uma dupla que, pasme-se ou não, tinha brotado da cena pós-punk.

Antes dos Everything But The Girl havia dois indivíduos, Tracey Thorn e Ben Watt, estudantes na Universidade de Hull e figuras já com algum nome feito na música. A eternamente tímida Tracey tinha feito parte do trio Marine Girls, amadorismo pop levado quase ao extremo (eram uma das bandas preferidas de Kurt Cobain), e Ben, prestes a editar o seu primeiro EP a solo, era filho de Tommy Watt, uma das grandes figuras do jazz escocês. Acabariam por se cruzar em 1982, ano em que ambos lançaram trabalhos pela reputada editora independente Cherry Red. Foi Ben quem a procurou contatar, na universidade, através de um gesto extremamente simples: pediu, no bar da associação de estudantes, para que chamassem por Tracey nos altifalantes. “De repente, ele parecia-me uma potencial alma gémea, neste lugar dos infernos cheio de betos com camisolas de rugby e raparigas que escondem os seus Tampax atrás de cortinas floridas”, escreve a vocalista em “Bedsit Disco Queen”, livro de memórias que lançou em 2013.

Palavra puxa palavra, “unidos na solidão”, como acrescenta no mesmo livro, Tracey Thorn e Ben Watt começaram a colaborar juntos, adotando o nome Everything But The Girl, roubado ao slogan de uma loja de mobiliário da cidade, ao mesmo tempo que iniciaram uma relação amorosa. Ainda em 1982 lançaram o seu primeiro single, uma versão de 'Night and Day', de Cole Porter. Logo aí, essa escolha poderia ter soado bizarra aos ouvidos de quem, anos antes, se encantava com a destruição que os Sex Pistols anunciavam, mas a dupla sempre se interessou mais pelo lado intelectual do caos, em vez de se atirar de corpo e alma aos braços dos lumpen. Entre as suas referências da época estavam nomes como os Young Marble Giants e os Subway Sect, bandas para quem o punk era, não um género, mas uma ordem Crowleyriana: façam o que quiserem. «Passámos o primeiro semestre a embebedarmo-nos, a ver [a série] “Reviver o Passado em Brideshead” e a magicar um plano para dominar o mundo através do nosso minimalismo jazz», conta Tracey.

“Eden”, o primeiro álbum dos Everything But The Girl, acabou por ser lançado em 1984, alcançando algum sucesso. As suas canções jazz/pop – a primeira faixa, 'Each and Every One', é uma bonita bossa nova à inglesa – levaram a dupla a ser inserida no mesmo parágrafo que artistas como Sade ou os Style Council, que rejeitavam o ar sabujo do punk e adotavam uma postura ligeiramente mais sofisticada, e colocaram-na, de igual forma, no 14º lugar das tabelas de vendas do Reino Unido. Mas, e isto é algo que qualquer fã dos Everything But The Girl entende rapidamente, não era aí, encaixotados, que Tracey e Ben pretendiam permanecer. No ano seguinte, “Love Not Money” mostrou uma sonoridade mais próxima da guitarra melodiosa de Johnny Marr, dos Smiths (de quem ficaram amigos), e em 1986 “Baby, The Stars Shine Bright” aliou sintetizadores new wave a arranjos pop clássicos. Mais que experimentar de disco para disco, os Everything But The Girl pareciam ter uma missão: fazer música, fosse em que género fosse, virtude tanto desse passado tabula rasa proporcionado pelo punk como do experimentalismo jazz tão familiar a Ben Watt.

“Idlewild”, em 1988, trouxe consigo o primeiro grande single dos Everything But The Girl, uma versão de 'I Don't Want To Talk About It', popularizada, anos antes, por Rod Stewart. “Language Of Life” e “Worldwide” cimentaram-nos como banda querida de uma certa franja da intelligentsia alternativa, até que, em 1992, a tragédia ameaçou bater-lhes à porta. É nesse ano que Ben Watt descobre sofrer da Síndrome de Churg-Strauss, uma doença autoimune que causa inflamação nos vasos sanguíneos, e que o levou a passar uma longa temporada no hospital – a qual é contada em “Patient”, livro que editou em 2012 e onde narra a sua experiência enquanto portador de uma doença rara, que o obrigou a remover 75% do intestino delgado (necrotizado) e a viver de acordo com uma dieta extremamente restrita.

Com Watt entre a vida e a morte, os Everything But The Girl foram forçados a fazer uma pausa nas suas digressões. Recuperado, o músico regressou ao trabalho em 1993, ano em que a dupla lança dois EPs, um deles contendo outro sucesso, 'I Didn't Know I Was Looking For Love'. 1994 é o ano de “Amplified Heart”, que só começou a crescer quando a remistura de 'Missing' encontrou o seu espaço nas pistas de dança. Dando-lhes, também, e pese embora o trocadilho, uma pista: seria na eletrónica que os Everything But The Girl encontrariam, por fim, o estilo que mais se lhes adaptava. E que foi influenciado não só pelo trabalho de Todd Terry, mas também pelo magnífico desempenho de Tracey Thorn em 'Protection', dos Massive Attack.

Terminado o seu contrato com a editora WEA (aparentemente composta pelas únicas pessoas no mundo que não viram no desvio eletrónico dos Everything But The Girl uma fórmula de sucesso), a dupla optou por trabalhar de forma independente em “Walking Wounded”, álbum de 1996 que deu ao mundo 'Wrong'. E importa colocar aqui uma espécie de parêntesis: se 'Missing' foi a porta de entrada para o mundo dos Everything But The Girl no que a muitos ravers dos anos 90 diz respeito, 'Wrong' foi-o na década seguinte, quando uma mashup do tema com um instrumental dos Soul Vision, produzido por Ben Watt, encontrou espaço nos DJ sets de muitas das noites de Ibiza – e, se se procurar bem, ainda hoje há quem a ela recorra para dar um toque de magia a uma noite house.

O sucesso parecia querer tudo com eles. Mas o contrário não se aplicava. Em 1997, foi-lhes oferecido um lugar cobiçado por tantos e tantos artistas: o de banda de abertura da digressão que os U2 fariam nesse ano. Tracey, no entanto, acabou por recusar. «A ideia de subir ao palco numa sala com capacidade para 60 mil pessoas, algures no Midwest, perante uma audiência rock impaciente, e tentar cantar-lhes a 'Missing'... enche-me de um terror de dar a volta ao estômago», diz a vocalista em “Bedsit Disco Queen”. Um ano mais tarde, Tracey daria à luz as duas primeiras filhas do casal, as gémeas Jean e Alfie, às quais se seguiria o filho Blake, em 2001. “Temperamental”, álbum editado em 1999 que acrescenta o drum n' bass à paleta da dupla, seria o último suspiro dos Everything But The Girl.

Até que, a 2 de novembro de 2022, sem qualquer pompa ou circunstância, os Everything But The Girl anunciaram, no Twitter, que tinham composto “um novo álbum” e que este sairia “na Primavera”. Apenas essa frase, rematada com um “muito amor”, como se a dupla não quisesse fazer grande caso daquilo que era, no fundo, uma novidade estrondosa: o regresso ao ativo de uma das mais acarinhadas bandas dos anos 90, 24 anos depois de “Temperamental”. Não que ao longo desse período Tracey Thorn e Ben Watt tenham ficado parados, afastados do mundo das artes. A primeira, além de ter colaborado com nomes como Tiefschwarz, lançou quatro álbuns a solo e dedicou-se à escrita; para além do já mencionado “Bedsit Disco Queen”, editou “Naked At The Albert Hall”, um livro sobre cantores e o canto em si, “Another Planet”, o seu segundo livro de memórias, e “My Rock 'n' Roll Friend”, a história da sua amizade com Lindy Morrison, dos Go-Betweens. Ben Watt trabalhou como produtor e lançou três discos em nome próprio, entre eles o magnífico “Hendra”, de 2014.

Anunciaram o regresso como se não quisessem fazer grande caso disso, como se aqueles tempos de ansiedade, no final dos anos 90, ainda estivessem bem presentes. Mas, ao mesmo tempo, anunciaram-no como se este fosse um dever seu – não por respeito aos fãs, mas por respeito à sua própria criatividade. E à sua própria vida. Em entrevista ao “The Guardian”, Tracey Thorn admitiu que “Fuse”, álbum que editam esta sexta-feira, poderá ter tido a sua origem no período de confinamento, sentido com mais força pelo casal, dada a doença de Ben Watt. “[O nome dele] estava na lista de pessoas que receberam uma carta do governo, a dizer-lhes o que deviam fazer”, contou. “Perto do final, começámos a pensar no que iríamos fazer a seguir. Um novo projeto? Continuar a viver as nossas vidas? Mas comecei a ter a ideia de tentar fazer algo com os Everything But The Girl. Se não o fizermos agora, ou em breve, talvez venhamos a perceber que é demasiado tarde. Não estamos a ficar mais novos e não podemos adiar isto para sempre”.

Acusando alguma pressão, Watt começou por recusar atribuir às canções feitas pelo casal o rótulo Everything But The Girl. “Mas rapidamente se tornou nisso”, acrescentou Tracey. 24 anos depois, a mulher que recusou subir ao mesmo palco que os U2 parece mais segura de si, mais arisca, menos dada aos tremores da ansiedade. E talvez as redes sociais tenham contribuído para tal. Em “Bedsit Disco Queen”, a vocalista afirma que, se pudesse voltar atrás no passado, gostaria de inventar o Twitter: “é o sítio onde despejamos todos os nossos problemas, rimo-nos deles, e saímos mais fortes”. “Fuse”, o título, vai de encontro a essa ideia de força, de renascimento. “Chamámos-lhe isso porque, apesar de termos tentado desvalorizá-lo, ao início, foi como se tivessemos acendido um pavio e houvesse uma explosão por acontecer”, explicou Watt à “Rolling Stone”.

A banda que mudou por diversas vezes de roupagem sonora tem em “Fuse” uma espécie de continuação de “Temperamental”, adaptada aos tempos modernos: ainda é a eletrónica a guiá-los, mas “Fuse” mostra bem que os Everything But The Girl mantiveram-se bem informados sobre as várias evoluções que a música sofreu ao longo destes 24 anos. Ouça-se 'Nothing Left To Lose', canção que escolheram para primeiro single, pontuada por uma batida eletrónica pós-garage. E, escondido nesses versos, o novo lema da dupla, que nada tem a perder com este seu regresso.

À primeira escuta, o que salta mais à vista em “Fuse” é a forma como a voz de Tracey Thorn se encontra alterada. Parece ter ganho uma nova: mais clássica, mais de diva, até mesmo quase afro-americana, como em 'Run A Red Light', segundo tema do disco. Nessa canção, onde a sonoridade mais suave dos Everything But The Girl de “Idlewild” é modernizada, ouvimo-la como que a perder a vergonha que tinha, como que a seguir o seu próprio conselho, descrito em “Naked At The Albert Hall”: “Os cantores pop são, simplesmente, pessoas que vão lá e fazem a coisa”. Mas é um engano nosso, uma miragem. Essa alteração da voz foi propositada, e feita recorrendo às novas tecnologias. “Desde o primeiro momento que pensámos em dar cabo da minha voz”, contou ao “The Guardian”. A quem via na voz de Thorn divindade, os Everything But The Girl contrapõem com o punk: nem Deus, nem mestres. “Estávamos desesperados por me lixar a voz. É uma das imagens de marca do grupo, pelo que foi muito divertido”. 

Há humor em “Fuse”, apesar de ser um disco bastante sério. 'Lost', canção sobre perda, apresenta-se como o momento mais doloroso, depois de uma, dir-se-ia, autobiográfica 'When You Mess Up' e antes de 'Interior Space', balada eletrónica a lembrar James Blake. 'No One Knows We're Dancing' viaja por três personagens distintas, montada num ritmo a lembrar 'Trans-Europe Express', dos Kraftwerk, e pontuada a espaços por estocadas de um sintetizador muito anos 80 (é a melhor do disco também por isso tudo). E há 'Karaoke', canção sobre cantar, eletrónica de chama ténue que parece ser uma espécie de complemento a “Naked In The Albert Hall”. No entanto, a curta duração do disco (pouco mais de meia hora) e o facto de não haver nenhuma canção que se destaque, sem querer com isto pedir uma nova 'Missing' ou 'Wrong', podem jogar contra si; damos por nós a desejar aquela canção que nos salve.

Tudo somado, e independente do que lhe chamem – reunião, regresso, ressurgimento –, “Fuse” é um álbum que não é nem o melhor da sua carreira nem pode ser aquilo de que os fãs estavam à espera. Sendo que os fãs nem sequer estavam à espera de nada. Mas é um álbum que mostra uns Everything But The Girl experimentais, como sempre foram, e menos dados a pressões externas, que foi o que levou ao seu prolongado hiato. No fundo: um disco que prova que a sua identidade não desapareceu com o tempo. Ao “The Guardian”, Tracey não quis revelar se o futuro próximo trará outro álbum da dupla. “Nunca mais passaremos por este momento, por este ar de surpresa”, explicou. Em “Naked In The Albert Hall”, a vocalista fala do seu desdém por “concertos nostálgicos”, o que significa que um regresso aos palcos não é, de igual modo, uma possibilidade próxima. Pelo menos por agora. Se gostaram de nos surpreender uma vez, são bem capazes de nos querer surpreender outra.