Antes de dizer que livro é esse, tenho de falar doutro livro, este escrito por um norte-americano e bem ficcional (apesar de o autor jurar no início que é tudo verdade).

O livro é o famoso livro de aeroporto The Da Vinci Code, de Dan Brown. Atenção: vou fazer algumas revelações sobre o enredo. Se alguém quiser ler o livro ou ver o filme, pare agora (mas não aconselho; gostava mesmo muito que lessem esta crónica até ao fim).

O livro revela um suposto escândalo: existe, hoje em dia, um descendente de Jesus! Segundo o autor, Jesus foi casado com Maria Madalena e mais não sei o quê — e a prova está bem viva na carne da descendente actual do casal divino.

Ora, o meu problema com o enredo não é religioso: é matemático.

Explico-me.

A ideia do livro é esta: há uma descendente de Jesus Cristo, que seria a última duma longa linha de descendentes, que teria passado pelos Merovíngios e teria sido protegida ao longo dos séculos por uma espécie de Ordem de Cavalaria, coisa que agora não vem ao caso.

Paremos uns segundos para pensar nisto.

Se virmos bem, só há duas hipóteses plausíveis: ou Jesus não teve filhos (como diz a Igreja Católica) ou, se os teve, não existe um descendente de Jesus. Existem milhares de milhões de descendentes de Jesus.

No caso hipotético de Jesus ter tido descendentes, será extraordinariamente difícil imaginar que todos os descendentes, ao longo das muitas gerações, tenham tido apenas um e só um filho (ou filha). Se assim fosse, então sim poderíamos imaginar que hoje haveria um e um só descendente de Jesus.

Como o número médio de filhos sempre foi bem superior a um por mulher (está a diminuir nos países mais ricos, mas esta situação é uma excepção na História dos últimos milénios), podemos concluir que, de Jesus até hoje, os seus descendentes terão tido bem mais do que um filho cada.

Para sermos muito cautelosos, imaginemos que, em média, os descendentes de Jesus tiveram dois filhos. É uma média razoável. Vários terão tido seis ou sete (ou mais), outros não terão tido nenhum.

De Jesus até hoje passaram uns 20 séculos. Imaginando quatro gerações por século (talvez até sejam mais), temos 80 gerações. Oitenta gerações em que cada descendente tem, em média, dois filhos cada um.

Neste cenário simplificado, Jesus terá tido dois filhos. Os seus dois filhos terão tido dois filhos cada um (estamos a simplificar, usando a média acima). Estes quatro netos de Jesus terão tido dois filhos cada um: oito bisnetos. (Mesmo que Jesus ou qualquer dos seus descendentes tenha tido só um filho, essa excepção seria largamente compensada pelas outras gerações.)

Avancemos então 80 gerações.

Quantos descendentes de Jesus teremos no mundo?

Aproximadamente 1 208 925 819 614 630 000 000 000.

Ora, como somos 7 800 000 000 pessoas no mundo, há muito descendente de Jesus por aí escondido.

A discrepância é fácil de explicar: entre os filhos, netos, bisnetos, hipernetos de Jesus, muitos tiveram filhos uns com os outros, claro está: o mundo é uma pequena aldeia e muito promíscua.

Olhando para os números, é fácil de perceber que, tanta geração depois, é bem provável que todos nós sejamos descendentes de todos os seres humanos que viviam há 2000 anos (excepto os que não tiveram filhos).

Os modelos matemáticos que mostram a improbabilidade de não sermos descendentes de alguém que tenha vivido na época são muito mais complexos, mas espero ter conseguido explicar razoavelmente como a matemática deita por terra a ideia de que, hoje, teríamos um só descendente de um homem que viveu há 2000 anos.

Esta revelação (que destrói ilusões de pureza familiar preservada ao longo de séculos), encontrei-a, explicada de forma muito mais rigorosa, num livro de Jorge Buescu chamado O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias. 

Fiquei a saber que sou, quase de certeza, descendente de Maomé e de D. Afonso Henriques. Afinal, ao contrário de Jesus, ninguém duvida que o Profeta dos muçulmanos e o nosso primeiro rei tiveram muitos e bons filhos. E, se Jesus de facto teve filhos (não sabemos), também eu sou um deles, com toda a probabilidade. 

Eu e todos os que lêem esta crónica, claro está. Só que ninguém escreve romances sobre nós.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras e publica um episódio diário no canal Pilha de Livros. A crónica acima é uma revisão de outra crónica.