1. Anteontem fui a Lisboa ver o espectáculo de estreia dos finalistas da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC). Fui e voltei como sempre no comboio da Linha de Sintra. A meio da linha fica a Amadora, onde há anos se aloja esta escola pública de actores, cenógrafos, figurinistas, produtores, etc. Nas últimas décadas, a Amadora foi ficando cada vez mais negra, como toda a Linha de Sintra. É frequente eu ser das poucas pessoas brancas, ou mesmo a única, numa carruagem, sobretudo à noite. E a Linha de Sintra é a mais povoada de Portugal, das mais povoadas da Europa. Por tudo isto, esperava ver pessoas negras em palco. Não que fosse pelo caminho a pensar nisso, seria apenas natural. Mas não aconteceu: todas as pessoas eram brancas.

2. A peça destes finalistas, “O Fuck. (Br)exit”, ainda pode ser vista hoje e amanhã, às 18h30, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, com texto e direcção de Sónia Baptista. Óptima direcção para um óptimo conjunto de performers, cheios de verve, de lata, incluindo figurinos, cenários, música: recomendo.
Quando a peça acabou, fui cumprimentar Mariana Sá Nogueira, professora na escola, grande figurinista, que conheço desde os tempos remotos em que estudei/fiz teatro (e que calha ter mistura negra, tal como a irmã, Paula, actriz espantosa, ambas fundadoras da companhia Cão Solteiro). Partilhei a minha estranheza sobre a ausência de pessoas negras. Ao lado de Mariana estava o cenógrafo João Calixto, igualmente professor na escola. Ambos disseram que não há finalistas negros no palco porque os estudantes negros são raros. Então a pergunta passa a ser: porque é que os estudantes negros são raros? E essa já é pergunta para um país.
Mariana acrescenta algumas: “Quantos trabalhadores negros/as existem nos cafés/restaurantes/lojas/serviços pelos quais passamos a caminho da escola? Quantos negros/as no corpo docente? Funcionários não-docentes? Segurança? E na equipa de limpeza?”

3. Enquanto conversávamos por entre a plateia esvaziar, vislumbrei uma incrível cabeleira “black power” em que eu reparara antes, justamente pelo contraste. Era o único negro finalista deste ano, Mariana apresentou-mo: Dennis Correia. Veio de Cabo Verde para a Amadora aos 14 anos. Não entra nesta peça — nem na que será apresentada dia 28 no Teatro da Trindade, com outra parte da turma — porque optou por fazer estágio em vez de peça. Sim, é raro haver pessoas negras nas turmas da escola, mas Dennis diz mais: é raro pessoas negras optarem pela via artística em Portugal.

4. Porque é que pessoas negras não optam tanto pela via artística em Portugal? Quer dizer, para além de todas as razões que tornam difícil a vida de seja-quem-for-que-opte-pela-via-artística em Portugal? Porque é que pessoas negras quase não estudam na principal escola pública de actores, cenógrafos, figurinistas, produtores? Para mais quando essa escola está numa cidade tão negra como é a Amadora, tão mais perto para quem mora na Linha de Sintra que as outras faculdades? Como é que uma escola pública de formação artística pode ser mais um reflexo do seu entorno? Que papel — instigador, facilitador, corrector — deve ter o Estado nisto? E o que tem isto a ver com a história portuguesa? Com a descolonização? Com o próximo Censos?

5. Tudo. Há semanas, em conversa com um académico brasileiro que conhece bem os debates pós-coloniais, ele contou-me a história de um cartaz numa manifestação de ex-colonizados do império britânico: “Estamos aqui porque vocês estiveram lá.” Essa frase aplica-se ao longo da Linha de Sintra. Uma boa parte das pessoas sempre à minha volta no comboio, com tantas origens, cruzamentos e línguas, está ali porque Portugal esteve lá.
Uso regularmente esta linha de comboio vai fazer dois anos; no começo da década de 1990 usei-a por um ano. A grande diferença, nestas mais de duas décadas de intervalo, é como a linha ficou negra. Isto é objectivo, tal como esta linha ser das mais densamente povoadas da Europa. Estamos, pois, a falar de muitas pessoas negras. Mas muitas são quantas? E quantas cidadãs, quantas residentes? Quantas à espera de nacionalidade há quanto tempo e porquê?
Trata-se da grande periferia de Lisboa, esse entorno é negro, e a ele se juntam partes da Linha de Cascais, da Margem Sul. Toda uma África em volta da capital, indistinta para quem atravessa as periferias sem ver caras, corpos, sem ouvir as vozes. Para quem só conhece uma amálgama grafitada, vista do vidro escurecido de um automóvel.

6. O Censos de 2021 seria uma oportunidade preciosa para saber das origens étnicas de quem está em Portugal. Mas o governo deixou ao Instituto Nacional de Estatística (INE) uma decisão técnica numa matéria política. E o INE, contrariando o parecer de um grupo de trabalho que dedicou um ano a isto, decidiu que não vai perguntar a origem étnica no Censos. Portanto, continuaremos a deduzir, a falar em “talvez”, e “provavelmente”, porque não há números. Estas pessoas nem sequer são números. E enquanto não forem fica muito mais difícil fazer, pedir, lutar por políticas públicas anti-racistas e descolonizadoras. Ficaremos nesse lugar comum meritocrático tão ao gosto do 10 de Junho.

7. Lutar contra o racismo começa em reconhecer o racismo, coisa com que Portugal historicamente tem uma dificuldade enorme. Para isso, é preciso mais história, outra história, outras histórias, e não menos história — ao contrário do que o lugar comum deste último 10 de Junho tenta atribuir a quem se bate por uma descolonização geral. Eu certamente quero muito mais história além da dominante no espaço mediático, legislativo, executivo, judicial, policial, escolar, urbano, lisboeta (como ex-capital do império). Toda essa história por vir, emergir, é também dívida e tributo a muita gente invisível, morta e viva. E quanto aos vivos, o mínimo que deveríamos exigir era saber de quantas pessoas estamos a falar. Seria o primeiro passo para os tornar um pouco mais visíveis, tirá-los da amálgama tão conveniente.

8. O objectivo do Censos é “saber quantos somos, como somos e como vivemos”, diz o site do INE relativo ao último que foi feito. “Uma contagem de todas as pessoas e de todas as habitações existentes no país”, numa “operação única que mobiliza importantes recursos” e disponibiliza “informação de grande utilidade para a definição de políticas e para a planificação de serviços”. Ou seja, está no próprio site do INE porque é que a pergunta sobre origem étnica devia ser feita no Censos. E porque é uma grande perda de tempo e recursos não a fazer, com consequências em políticas e serviços que, assim, não virão tão cedo.

9. Para quem não acompanhou esta decisão, um resumo. O grupo de trabalho nomeado para o assunto votou pela inclusão no Censos de uma pergunta sobre a origem étnica. Sugeriu a formulação: “Portugal é hoje uma sociedade com pessoas de diversas origens. Queremos melhorar a informação sobre essa diversidade para melhor conhecer a discriminação e desigualdades na sociedade portuguesa. Qual ou quais das seguintes opções considera que melhor descreve(m) a sua pertença e/ou origem?”
Os quatro subgrupos sugeridos eram:
— Branco/Português branco/De origem europeia
— Negro/Português negro/Afro-descendente/De origem africana
— Asiático/Português de origem asiática/De origem asiática
— Cigano/Português cigano/Roma.
Uma sondagem da Universidade Católica apontou que 78% dos portugueses eram a favor da pergunta. Tal como o INMUNE, Instituto da Mulher Negra; ou a Djass-Associação de afrodescendentes. Mas o Conselho Superior de Estatística recomendou não a fazer, e o INE concordou. Justificações do responsável, Francisco Lima:
— ser matéria sensível, a que se opõem sectores como a comunidade cigana
— implicar um exercício de auto-classificação subjetivo numa questão complexa
— o INE não ter experiência na recolha de dados sobre esta temática, cuja análise obrigaria a extenso estudo e testes, o que não é possível até 2021, não havendo também tempo para o debate público
— na União Europeia, apenas o Reino Unido e a Irlanda fazem recolha deste tipo de informação
Quatro argumentos que se podem evocar para mais ou menos tudo o que não se quer. Além de que fazem das pessoas tontinhas. Como se todos nós não fôssemos traumatizados ambulantes pelas perguntas incompreensíveis da burocracia portuguesa. A ver se nos entendemos: a pergunta, tal como foi formulada pelo grupo de trabalho, é totalmente compreensível, ao contrário da grande maioria da burocracia a que somos submetidos. E politicamente urgente. Havendo para isso vontade política. É subjectiva? Sim, mais, tem uma parte de escolha individual. Tem riscos de gerar segregação? Tem. Queremos um mundo sem fronteiras, sem segregação? Eu e milhões com certeza queremos. Mas esse não é o mundo que temos. E no Portugal de 2019 falta muito para os negros não sofrerem discriminações várias. Portanto, os riscos de não perguntar, de não saber, são muito maiores. E o relatório final do grupo de trabalho sugere criar um Observatório do Racismo e da Xenofobia para lidar com os riscos de a informação ser mal usada. E para quem não quiser responder, deve haver essa opção assinalada: Não responde.
Para não se ficar pelo vazio, o responsável do INE anunciou um inquérito “que consiga capturar estas dimensões”, quais “as razões para a existência ou não de discriminação e desigualdade por questões raciais”. Mas, de novo, está no seu próprio site porque é que um Censos é uma oportunidade única, com meios únicos.

10. A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, disse que a decisão “cabia ao INE”, e que agora se espera que o INE “possa, tão cedo quanto possível, fazer o inquérito, que “pode até ser mais regular do que os 10 anos com que os censos são feitos”. Valha o contraponto da deputada socialista Isabel Moreira, para quem a decisão do INE foi “triste”, “estes censos eram uma oportunidade, um passo em frente único para o combate ao racismo”; e Portugal precisa “de uma verdadeira estrutura pública que desenvolva políticas nesta matéria”.
Já Marcelo declarou: “Acho que foi uma decisão sensata do Instituto Nacional de Estatística porque se gerou um debate que não fazia sentido.” Decisão sensata para quem? Debate que não faz sentido para quem? Para quem está dentro do automóvel de vidros escurecidos? Experimentem pensar nestas frases de Marcelo do ponto de vista das periferias negras.

11. Portugal não precisa de 10 de Junhos alternados entre o território nacional e Cabo Verde (o despautério!). Precisa de saber quantos negros tem no seu território, incluindo os muitos de origem cabo-verdiana. Precisa de políticas públicas a partir de estatísticas, conhecimento que melhore a vida das pessoas. Precisa de pessoas não-brancas, nomeadamente negras no parlamento, no judiciário. Precisa de discutir porque não há mais estudantes negros numa das poucas instituições de ensino superior público rodeada de população negra. Porque não há mais negros em todos os palcos, em Portugal. E o que fazer para mudar isso.