Ora, perante as doenças dos miúdos, ficamos um pouco desorientados entre medicamentos, máscaras e mensagens à pediatra. Felizmente, não tenho na família aquele tio irritante que chega de sorriso nos lábios e começa logo a desancar estes tempos de agora: «No meu tempo não havia estes cuidados e sobrevivemos todos!.

Sim, sobreviveram todos — menos os que não sobreviveram.

Na verdade, a mortalidade infantil diminuiu de maneira tão abrupta que é difícil perceber como não andamos todos espantados com o feito. Não que não ache que às vezes temos cuidados a mais... Mas, enfim, achar que os cuidados não valem a pena porque houve pessoas que sobreviveram aos tempos em que a mortalidade infantil era muito maior é uma lógica um pouco estranha.

É uma lógica estranha — e perigosa: são as regras de segurança que não valem a pena («Eu sobrevivi!»), a obrigação de usar o cinto de segurança que é demais («Sempre andei sem cinto e aqui estou!»), as leis do trânsito que são uma perseguição aos condutores alcoolizados («Sempre conduzi depois de beber e não matei ninguém!») e por aí fora.

Aceito que desconfiemos do excesso de paternalismo legal (embora não veja grande problema nesse paternalismo se nos levar a usar o cinco de segurança e a conduzir sóbrios), mas, no caso dos cuidados com as crianças, a crítica dirige-se normalmente aos pais preocupadíssimos com os filhos. Que desaforo! Onde já se viu querer que os filhos vivam em segurança? Já sei, já sei, há o exagero... Mas alguma coisa correu bem se a mortalidade infantil diminuiu da maneira que diminuiu...

Na verdade, isto radica num erro de pensamento: só ligamos ao que acontece e ignoramos aquilo que não acontece. Parece natural? Talvez seja. Mas não deixa de ser perigoso.

Este medicamento curou a doença?

Este erro de pensamento também se vê na nossa atitude para com os medicamentos. Há quem caia nas patranhas mais absurdas só porque ouviu alguém dizer que tomou X e a doença Y passou. Ora, as doenças, muitas vezes, passam por si. Chegar a conclusões com base num caso isolado não serve de muito. Afinal, ignoramos todas as vezes que alguém tomou X e a doença Y não passou. Há formas de estudar a questão a fundo (os ensaios clínicos) — mas não há ensaio clínico que tenha mais força na cabeça de muitos de nós do que aquilo que que me aconteceu a semana passada («Sim, tomei X e fiquei logo bom!»).

Às vezes, há doenças simples (como as constipações) que servem para vender grandes quantidades de «medicamentos» de água e açúcar com nomes estranhos — muitas pessoas tomam e ficam boas passado três dias. Não tivessem tomado tal medicamento, também ficariam boas passado três dias. A diferença é que só vemos o que acontece — para vermos o que não acontece é preciso olhar para os números e isso dá trabalho.

A corrupção está a aumentar?

É precisamente o mesmo erro que está na origem da idealização ingénua do passado. Há tanta gente que anda por aí convencida que houve um tempo, há umas quantas décadas — quase sempre durante a juventude da própria pessoa — em que as crianças se comportavam bem, os portugueses falavam uma língua perfeita, não havia adolescente que não lesse vinte livros por mês — um tempo em que a corrupção não era um problema...

E não era um problema, sim — porque não se via. Mas é bem provável que lá estivesse. Sim, parece haver mais notícias sobre corrupção — mas achar por isso que a corrupção aumentou é cair no tal erro de pensar apenas naquilo que se vê. Aliás, tanto quanto sabemos, a corrupção até pode ter diminuído, o que não será fácil de confirmar, pois este tipo de crimes é, por definição, difícil de medir.

Somos mesmo muito bons a ignorar aquilo que não acontece — as crianças que não sofrem acidentes, as vezes que um falso medicamento não cura a doença, os acidentes que não se dão, a corrupção que não se vê... Resultado? Uma visão do mundo um enviesada.

O que não acontece é, por vezes, a verdadeira notícia — só que é uma notícia que poucos têm interesse em ler. Assim, se registarmos uma diminuição de um qualquer indicador durante anos e anos, as notícias serão muito menos bombásticas do que naquele ano em que o mesmo indicador sobe, por acaso, um pouco — pensemos, por exemplo, nas mortes na estrada ou, voltando ao início, na mortalidade infantil...

Isto não seria grave, se não nos levasse a ignorar aquilo que andamos a fazer um pouco melhor, o que é quase tão grave como insistir naquilo que fazemos mal.

Marco Neves | Tradutor e professor. Autor dos livros A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.