Para quem não é especialista em temas bíblicos ou não viu o filme de Francis Ford Coppola, de 1979, vale recordar que os Quatro Cavaleiros foram inventados pelo apóstolo João na sua obra distópica Apocalipse, escrita no século I. João, desterrado numa ilha, teve uma série de visões terríveis do que seria o fim do mundo, devastado pelos quatro cavaleiros - Guerra, Fome, Peste e Morte. Ao longo dos séculos, o tema dos cavaleiros captou a imaginação das letras e artes (com incontáveis livros, poemas, pinturas, filmes, e até bandas desenhadas) e tornou-se o sinónimo da desgraça total que tem acontecido em muitas regiões do mundo, em várias ocasiões. A II Guerra Mundial, por exemplo, foi uma época em que os Quatro Cavaleiros andaram à solta pela Europa.
Mas chega de cultura geral e passemos à geografia. O norte de África, árido e quente, inclui os países que dão para o Mediterrâneo e que conhecemos sobretudo por serem muçulmanos, ora caóticos, ora ditatoriais, ricos em petróleo e gás natural. A maior parte do continente, chamada genericamente de “África”, vai do Congo à África do Sul, o terreno varia entre savana e floresta tropical, os povos são animistas, muçulmanos e cristianizados e tem recursos naturais que durante séculos foram explorados pelos colonizadores europeus: primeiro madeiras e produtos tropicais, depois minerais valiosos (ouro, diamantes) ou estratégicos (cobre, platina, zinco, titânio, etc.).
Entre a Africa central/sul e a África do Norte fica esta região de agricultura de sobrevivência, pouca água ou água demais (Guiné-Bissau), pobre e partilhada por uma infinidade de tribos. O Islão converteu muitos, mas são maioritariamente animistas. Para as potências europeias, historicamente organizadas com fronteiras definidas e lideranças fortes, a África era uma terra de ninguém, onde os cafres deambulavam sem freio, à disposição para serem subjugados. Assim, na Conferência de Berlim de 1884 os países europeus dividiram o continente a régua e esquadro, atribuindo os “países” assim demarcados aos interessados em colonizá-los. Esta decisão, feita por diplomatas que nunca tinham posto os pés em África, nem sequer sabiam como eram os que lá viviam - aliás, o continente ainda não estava topograficamente demarcado - está na origem de todos os problemas que se seguiram, até hoje. Para se ter uma ideia da arrogância geopolítica que dominava a Conferência, o Congo foi atribuído ao rei Leopoldo II da Bélgica como propriedade pessoal. (A Bélgica foi inventada em 1815 para criar um tampão entre a França e a Alemanha, e precisava de encontrar recursos naturais que a sustentassem.)
Não vamos aqui elaborar sobre todos os problemas que esta partilha artificial do continente acabou por criar, ao juntar tribos que se detestavam e dividir reinos africanos por novas unidades políticas. Há livros sobre isto, e muito mais poderia ser dito. Nós, portugueses, sendo uma das potências colonizadoras, conhecemos bem estas histórias.
Postos estes longos pressupostos, chegamos ao âmago da questão: a situação do Sahel, a tal região que, não estando próxima da Europa nem na região equatorial tropical/equatorial rica em matérias-primas, ficou mais ou menos ao abandono. Foi dividida em “países” que no período da descolonização se tornaram independentes e fizeram alguns realinhamentos. (Portugal, como tão bem sabemos, esticou este período até 1974, mas é uma infeliz exceção).
Para a história que nos interessa contar, chamemos Sahel aos seguintes países: Mauritânia, Senegal. Guiné, Mali, Niger, Nigéria, Chade, República Centro-Africana, Sudão, Sudão do Sul, Eritreia, Uganda e Etiópia. É aqui que os Quatro Cavaleiros do Apocalipse andam a galope; e ainda agora começaram, pelo que se antevê.
Inicialmente, isto é, entre a descolonização e a atualidade, a maioria ficou sob a influência do antigo colonizador - na maioria dos casos, a França - e foi apoiada pelos Estados Unidos sob a forma de ajuda humanitária e treino das forças militares. O objetivo era, evidentemente, criar uma região pró-ocidental e impermeável aos movimentos radicais islâmicos que, entretanto se foram infiltrando aqui e ali.
Esta ajuda não levou em conta, ou ignorou, conforme as conveniências, o modelo particular como estes países são governados. Geralmente há um presidente vitalício, sucessivamente eleito por grande maioria, e apoiado pelos militares, que formam a “elite” do país e garantem a independência e o “bom funcionamento das instituições.”
Nos últimos anos tudo começou a mudar - em toda a parte, ao mesmo tempo. Em três anos aconteceram oito golpes de estado (o último no Gabão, no mês passado), em parte porque a carência de alimentos se tornou catastrófica, em parte porque os militares resolveram que os seus queridos presidentes já tinham sido eleitos vezes demais, e ainda porque surgiu uma nova força na equação, o famigerado Grupo Wagner. Temos assim uma sopa que mistura o presidente eterno, os militares com vontade de poder, os grupos radicais islâmicos, as potências ocidentais que os querem travar e os recém-chegados russos, tudo num caldo de milhões de cidadãos esfomeados (440 milhões, segundo a ONG Compasson International), analfabetos (40%, segundo estimativas) e completamente desprovidos de direitos de qualquer espécie.
Os presidentes vitalícios já perceberam o problema, mas nem todos têm sido o mesmo sucesso a travar os militares. Alguns casos: Horas depois da guarda presidencial do Gabão ter deposto o presidente Ali bongo, o presidente dos Camarões, Paul Biya, mudou os oficiais de segurança do Ministério da Defesa. O senhor do Ruanda, Paul Kagame, reformou uma dúzia de generais e 600 altas patentes. Na Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló acusou algumas altas-patentes de tráfico de droga e nomeou dois novos chefes de segurança. No Uganda, Yoweri Museveni despachou o seu chefe de Segurança e mais onze generais. Na Serra Leoa, Julius Maada Bio foi a tempo de mandar prender uma dúzia de oficiais superiores e chefes da polícia, isto um mês depois de ter ganho mais uma eleição.
Fazem este senhores muito bem em precaver-se. Desde 2020, os militares foram bem sucedidos no Burkina Faso, Mali, Sudão, Niger e Gabão. Tentaram, mas não conseguiram - por ora - na Gâmbia, Guiné-Bissau, Serra Leoa e São Tomé e Príncipe (que não faz parte do Sahel, mas é como se fizesse…)
Em todos os casos, os vencedores não deixaram de recorrer às redes sociais para trazer para a rua multidões de apoiantes. Sim, porque nestas partes pode não haver pão, retido na Ucrânia, mas não falta sinal de satélite, fornecido, quiçá, por Elon Musk.
Por falar em Ucrânia, os dois novos “influenciadores” na região são a Federação Russa - via Wagner - e a China, o que leva os donos dos países (acho que “dono” é a melhor palavra genérica para estes presidentes e generais) e precisar menos da ajuda ocidental.
A França, que era a maior potência colonizadora no Sahel, tem sido particularmente hostilizada. Um problema para Macron, pois 20% do urânio que alimenta as centrais nucleares francesas vem precisamente do Niger.
Quanto aos norte-americanos, o que lhes custa mais é que a maioria dos generais golpistas foram treinados por eles…
Podia-se filosofar que há aqui dois mundos paralelos em convulsão. Um deles é o da população, que simplesmente quer manter-se viva, já nem se importa sob que poderes - pois presidentes eternos e militares são a mesma coisa. O outro são os interesses económicos. A região é rica em cobalto e lítio, dois minerais ainda mais importantes do que o ouro. (O Congo, que não faz parte da região, mas está mesmo ali ao lado, produz 70% do fornecimento mundial de cobalto)
Resumindo: os Quatro Cavaleiros andam a galope - e não só por estas partes, mas não vamos deprimir ainda mais o leitor. A parte incorreta da profecia é que o Armagedão parece não ter fim à vista, um fogo do inferno que arde, mas não se extingue. Aqui na Europa estamos horrorizados, e com toda a razão, pela cavalgada bárbara que nos toca a fronteira Leste. Contudo, se formos prestar atenção ao resto do planeta, o que não falta são armagedões em andamento. Fora o aquecimento global...
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