De 8 de Novembro até hoje vêm-me a cabeça dezenas de manchetes para o que aconteceu: “E tudo a sondagem levou”; “EUA votaram, os céus abriram-se em prantos” (dado que choveu copiosamente na capital logo após reconhecida a vitória de Donald Trump e durante todo o dia 9); “Red Wedding” (para os fãs de GOT); “Fia-te na sondagem e não corras”; “Donald, cumpriu-se a profecia”; “A grandeza de um fazedor de misses”; “Vêm aí quatro anos de grandeza”, ou até “Quem já comprou o bilhete para o Canadá?”… deixo à escolha do freguês, porque esse é o poder do “on demand” que Donald Trump usou, e bem, durante toda a sua campanha. Se quem vive nos Estados Unidos se diz surpreendido com o resultado só pode estar a brincar comigo. Mas afinal, este não é o país de todas as oportunidades?

Custou-me ver os democratas recusarem-se a aceitar o cenário do mar vermelho que ia manchando o mapa dos Estados Unidos à medida que a contagem ia avançando, agarrando-se à esperança de que as coisas sempre viram a dado momento da noite. Foi como assistir a uma final de campeonato com a equipa do coração a perder a dois minutos do fim por 3-0, e acreditar que os 5 minutos de compensação não só vão trazer o empate, como vamos dar a volta no prolongamento.

Desde que o fenómeno Donald Trump sacudiu a capota para entrar na política que olho para esta sociedade de forma diferente e recordo-me, nas conversas com amigos americanos e não só, que os meus palpites iam na direcção de uma vitória do empresário. As hipóteses dele foram tornando-se cada vez mais reais, enquanto muitos queriam acreditar que era uma fantasia da sua cabeça e ego milionários.

Esta campanha e o seu resultado foram como tocar numa malagueta e esfregar os olhos logo a seguir. Foi aquele "fogo que arde sem se ver”!

A América de Obama não podia adivinhar isto, só quem leu o Camões e escrevia nas capas dos cadernos vezes sem conta estrofes de um poema que falantes de língua portuguesa exploram desde pequeninos, conseguiria ver essa chama invisível que havia de queimar os mais liberais e nem por isso poupar os conservadores.

E porquê é que a América de Obama não podia prever isto, poesia à parte? Porque estava habituada a um discurso de candura, inspirado num mundo melhor, cheio de pessoas com direitos iguais, igualdade de acesso a coisas, um mundo de inclusão e valorização do indivíduo, sem olhar a raça, credo, ideologia, nível social, orientação sexual. Tudo valores que a terra das oportunidades, a nação livre, ainda deve a muitos dos seus cidadãos.

A paixão desenfreada por uma América grande, sem saber o que isso significa, ou melhor, certamente segundo standards que só quem votou em Trump compreende, deixou com as calças nas mãos muita gente que até se divertiu com uma série de patacuadas que colocou Trump numa das cadeiras mais poderosas do mundo.

E o mundo está chocado!

Acordei, arrisco dizer, com centenas de mensagens de amigos e família por este mundo fora, a perguntar-me como é que ia ser agora? Mas afinal quem vota no Trump? A dizerem-me que tenho sempre para onde voltar.

Respondo ao último comentário primeiro: ninguém vai de facto sair dos Estados Unidos. E os americanos que votaram em Trump porque estão fartos dos imigrantes, dos ilegais, dos negros, dos muçulmanos, dos latinos e dos asiáticos, de uma forma geral, vão provavelmente ter a desagradável surpresa de que nos próximos quatro anos de grandeza vamos ser todos convivas do mesmo banquete.

A frustração trabalha por turnos e calha a todos. Esta é a vez de eles acreditarem que a esperança chegou, da mesma forma que há oito anos os negros americanos, os imigrantes e a comunidade LGBT abraçaram a esperança estampada na cara de Barack Obama.

Quem votou em Trump?

Todos os que odeiam Hillary e eles são mais que as mães, como se diz na gíria portuguesa. Algo que o mundo lá fora não conseguia sentir era esse ódio latente por Hillary. Vezes sem conta disse a amigos, "existe mais gente que odeia Hillary, por muito que Trump vos pareça ridículo”.

Ah, e votaram em Trump os cristãos (ainda estou para perceber esse cristianismo em que a irmandade só vale se partilharmos o mesmo tom de pele, cor de cabelo, os mesmos valores morais que ainda ninguém conseguiu explicar, mas certamente contemplam o apalpar as saliências femininas). Votaram os machistas, que também são mais do que os meus dedos podem contar e que foram em barda para as assembleias de voto garantir que o lugar da mulher é na cozinha, de saias e à disposição.

Donald Trump é o novo profeta, que ganhou o voto da classe branca trabalhadora que espera voltar às minas de carvão para fazer este país grande de novo.

Também votaram em Trump os racistas que não superaram o facto de Barack Obama ter estado na Casa Branca por oito anos. Há quem diga que Hillary, além de todos os anticorpos que tem, sofreu com o facto da América branca ainda estar zangada com a realidade de estar a ser dirigida por um “homem que não se sabe de onde veio nem o que andou a fazer”, e que negará sempre que essas suspeitas se devem ao seu tom de pele. Mas com dois dedos de testa se chega a essa conclusão quando se elege sem hesitações um candidato que se negou a apresentar as suas declarações de impostos e que conseguiu declarar banca rota num dos poucos negócios que de uma forma geral dá lucro ao seu proprietário, o negócio dos casinos, especialmente num país como os Estados Unidos. Naturalmente, é escusado escrever que nunca se ouviu o plano de governação de Donald Trump e nem se questionou com real interesse e de forma desapaixonada o comportamento agressivo de um futuro presidente pronto a insultar tudo e todos. Valia tudo, eleger quem fosse para quebrar Hillary e os democratas.

Votaram em Trump pessoas inteligentes, com cursos superiores, viajadas. Eu falei com elas, não vi na televisão nem me contaram. Pessoas que acreditam veementemente que Donald Trump vai agitar o congresso e mudar as coisas. Mas o congresso é republicano e, ou eu estou a ver isto mal, ou sendo assim Trump só terá duas hipóteses, ser comandado pelo congresso para poder governar ou lutar contra o seu próprio partido. A segunda seria um “Obama parte II”, dando razão a um meme que surgiu após as eleições e se tornou viral: “Orange is the New Black”. Não, não penso que Donald Trump se vá rebelar contra o seu próprio partido. Ganhar a nomeação e até a eleição foi “peanuts”.

O povo, como me disse um democrata “ferido” na manhã de quarta-feira, “não ouviu nada do que Trump andou a dizer”, mas no congresso eles não têm mais nada para fazer e vão ter que ouvir…

"America told us we don’t matter” .

Washington DC acordou visivelmente deprimida. Os apoiantes do novo presidente-eleito não se manifestaram publicamente, nem para dizer “in your face”. Não nos podemos esquecer que é uma cidade que emprega essencialmente funcionários federais e é proibido, como tal, manifestar partidarismos nos edifícios e suas imediações. Mas esconder a felicidade é relativamente fácil. A tristeza, a decepção estampada nos rostos daqueles com quem me cruzei e atrevi a cumprimentar, não. Um “how is it going”  - que dá sempre para mais do que um “just fine”, especialmente em dia pós-eleições - revelou que muitos americanos  - e não só os de nacionalidade adquirida, mas também os de gema - não estavam preparados para este soquinho no estômago, mesmo que Donald Trump tenha tido um discurso de vitória num tom incrivelmente suave, como que se de um beijinho no ombro se tratasse.

Na minha rede de amizades li mensagens que apelavam a quem tivesse amigos imigrantes, gays, lésbicas, transexuais, negros, que lhes desse um abraço porque a “América acaba nos dizer que não temos importância” ("America told us we don’t matter”). É o sentimento de quem viveu um conto chamado Obama e agora está desorientado e se quisermos “hopeless” (sem esperança).

Parte da América está a comemorar baixinho, a outra parte está a manifestar-se. Los Angeles, Nova Iorque, Chicago, Filadélfia, Oakland (Califórnia), Seattle não dormiram de 9 para 10. Não querem Trump, querem garantir que ele não vai a um segundo mandato e começaram os protestos nem 24 horas depois de ele ser eleito.

Ao partido democrata fica um conselho, que é de graça e vale o que vale: comecem hoje, mas comecem de fresco. Hillary não perdeu só porque é um ódio de estimação de todos os republicanos e uma figura pouco amada entre os democratas. Hillary Clinton perdeu também porque, além de ter tido Obama como dano colateral com a questão do racismo, teve um suposto “escândalo” de e-mails cujo conteúdo nunca ninguém soube ao certo, nem o quanto a segurança nacional ficou beliscada com o uso do servidor privado. Representa o tradicional, o chamado “establishment” que parece ser um bicho papão, está casada com Bill Clinton. Tramou Bernie Sanders e perdeu os millennials e mais confiança dos jovens democratas. Hillary Clinton é mulher e por muito que custe a muitos e muitas, a América não quer acreditar que possa estar preparada para uma líder mulher, mas têm quatro anos pela frente, toca a trabalhar!

Alice Morena

Há três anos em Washington DC, largou tudo para concretizar um sonho da adolescência, viver a experiência americana, não o sonho. Fascinada pelas tricas políticas, apenas para ginasticar o cérebro e não profissão, estava ansiosa pelas primeiras eleições americanas que viveria no terreno. Neste momento aguarda pelas próximas eleições.