Guerras, sempre as houve. Considerando os conflitos localizados, chega-se rapidamente à conclusão de que não houve um único ano, desde o fim da última guerra dita “Mundial”, em que não houvesse alguém a lutar contra alguém. Alguns conflitos chamaram a atenção internacional, como o da Coreia, do Vietname, dois no Afeganistão, entre a Índia e o Paquistão – apenas a título de exemplo, porque a lista é extensa. E depois há as guerras civis, étnicas, religiosas, as chamadas “proxy” (ou seja, em que os verdadeiros adversários não estão a matar-se no terreno, mas usando países, seitas ou etnias interpostas), e mais uma série de conflitos, esporádicos ou permanentes, em que ninguém fora dos teatros de operações repara, mas que também matam. Algumas guerras são tão complexas que é impossível descrevê-las – como é o caso da Síria, onde se enfrentam governamentais e rebeldes, islâmicos fundamentalistas e curdos e ainda russos e norte-americanos, numa combinação de alianças e contra-alianças que desafiam a lógica e cuja origem do rancor se perde.

Portanto, a guerra é uma actividade constante da espécie. Pode medir-se cada uma pelo número de vítimas, meios, conquistas ou pelas suas consequências – as mudanças geopolíticas, ou estratégicas que dela resultam.

Abreviando as considerações filosóficas, ideológicas e materiais, sigamos directamente para a primeira guerra global depois de 1945, a que presenciamos hoje, ainda nem sequer ultrapassada a pandemia. Global, não porque envolve muitos países; afinal é “apenas” uma grande potência a ocupar um país vizinho considerado inferior. Global, pelo que significa e pelo que vai acarretar em repercussões no panorama europeu e no equilíbrio entre a China e os Estados Unidos – esse sim, o grande conflito mundial a decorrer, embora (ainda) sem uma guerra aberta.

A Ucrânia é uma daquelas nações que tem a infelicidade de estar entre países muito maiores e ambiciosos. A Polónia é outro caso, como em geral o são todas as pequenas nações naquela região devastada que faz fronteira entre Ocidente e Oriente. Como todos aprendemos até à exaustão nestes últimos dias, a Ucrânia foi uma grande potência, há séculos atrás. Kiev, que chegou a ser a primeira capital da Rus, a futura Rússia, que acabaria por absorvê-la, conseguiu ser brevemente independente em 1917, sendo enfiada na URSS em 1922. A independência viria a ser declarada em 1991, e confirmada por referendo. O que também aprendemos é que os ucranianos não são russos, nem sequer falam a mesma língua (mais distantes que o português e o espanhol) e, sim, gostariam de ser um país europeu “normal”, com todos os privilégios que a UE tem implicado.

Quanto à Rússia, é actualmente a coutada de Putin. O "putinismo" é uma doutrina de extrema-direita que aspira a reconstituir o território da antiga União Soviética, mas com valores capitalistas (na pior acepção do termo “capitalismo”). O aparelho de Estado está nas mãos da antiga polícia política, o KGB, distribuindo benesses económicas aos grandes empresários que se portam bem, atirando algumas migalhas ao vulgo, anestesiando o proletariado com a recuperada religião (cristã ortodoxa) e alimentando a ideia de que o país tem um lugar predestinado na cena mundial.

O facto de Putin invadir a Ucrânia não tem nada de surpreendente: ele próprio tem vindo a declarar publicamente, há anos, que vai desfazer “a maior tragédia do Século XX”, entenda-se, o desmantelamento da URSS.

O que é interessante, para começar, são os resultados imediatos desta invasão anunciada.

Ao nível político, por um lado, ressuscitou a NATO; por outro, atestou a impotência da UE.

A NATO, fundada em 1949 para defender o “mundo livre” do bloco comunista, esteve envolvida na guerra da Bósnia Herzegovina (1992-2004), na Sérvia e Kosovo (desde 1999) e no Afeganistão (2001-14) – nenhuma destas intervenções directamente relacionadas com o seu objectivo original. Na verdade, depois da queda da URSS, em 1989, a NATO esgotou a sua razão de existir, partindo do princípio que o inimigo declarado, a Rússia comunista, desaparecera da equação. Foi-se arrastando como uma sinecura para generais dos países participantes, e quase morreu quando Trump a rejeitou como um “mau negócio” para os Estados Unidos. Os europeus compreenderam o alcance deste esvaziamento implícito na falta de protecção que lhes tinha permitido não gastar dinheiro em defesa durante décadas, mas não se preocuparam. Afinal, não se via nenhum perigo comunista ao pé da porta. O único “comunista” (ah!ah!ah!) com mau cariz era a China, que teria de ser combatida economicamente, não à bala.

Simultaneamente, os europeus passaram a depender cada vez mais da energia (gás e petróleo) da delapidada Rússia, que parecia não encontrar um caminho político e económico de sucesso.

Não passou pela cabeça de ninguém que a Rússia passaria duma ditadura comunista para outra, fascista, mas com os objectivos da anterior. 

Agora, que aconteceu o impensável, há que reequacionar rapidamente a nova conjuntura. 

A primeira evidência: pisar os calos económicos dos malvados, como se isso fosse uma resposta que os assustasse. Os oligarcas russos podem achar desagradável perder as suas fortunas no estrangeiro (se é que vão perder, realmente), mas sabem que seria muito mais desagradável incomodar o KGB putinista.

A segunda: resolver a crise energética. Por um lado, substituir o gás e petróleo russos por outros fornecedores, que não estão à vista; por outro, aguentar a inevitável subida dos preços energéticos, que se vão reflectir em toda a sociedade. Combustíveis mais caros, transportes em alta, preço dos consumíveis a disparar. Os alemães, principalmente, que fizeram o disparate de prescindir do nuclear e depender em 40% do gás russo para se aquecerem e cozinhar.

E a terceira: preparar o continente para uma nova escalada militar, antecipando que certamente Putin não resistirá a ir além da Ucrânia. Ainda há países da antiga URSS que não estão sob o seu controle.

A linha vermelha é, evidentemente, os países que pertencem à NATO. O ataque a um deles obrigaria a organização a responder. Mas os Estados Unidos estão longe e têm problemas internos que lhes cheguem (uma jogada antecipada genial de Putin, apoiar a eleição de Trump). A Europa vai ter de gastar dinheiro em defesa e convencer os seus cidadãos a uma qualquer espécie de serviço militar. Na melhor das hipóteses, isto é, na hipótese de conseguir fazê-lo, levará anos.

Outra consequência evidente desta integração da Ucrânia na esfera putinista é a constatação de que os Estados Unidos já não são a super-potência que pareciam ser (até à derrota no Afeganistão). Os Estados Unidos descem no estatuto internacional, mas a Rússia não sobe. O tão aspirado estatuto de super-potência fica fora do seu alcance, mesmo que ganhe território, porque perde acesso aos mercados (energético e financeiro) e à tecnologia de ponta que não tem – ficará, durante um bom tempo, um Estado pária.

De facto, e como já se estava a ver, quem realmente tem poder de decisão é a China. O poder de não fazer nada ou de fazer várias coisas – tudo a seu favor.

Talvez ajude a Rússia, já deu indícios de que o fará. Mas será uma ajuda sempre controlada pelos seus interesses e que impeça a Rússia de se desenvolver demasiado.

Mas não precisa de fazer nada para ganhar com a situação. As suas matérias-primas valerão mais, os seus produtos continuarão a inundar os consumidores mundiais com todo o tipo de produtos indispensáveis à “vida moderna”.

A invasão russa, que só teve como consequência num mero bater de pé das democracias indignadas, dá-lhe mais espaço para fazer o mesmo: invadir Taiwan. Sanções económicas à China? Só rindo. Retaliação militar? Fora do alcance.

Putin, querendo ser maior, apequenou-se.

Os Estados Unidos, que já não são grandes, continuam na curva descendente.

A Europa, que nem se consegue definir, terá ocupar-se com a sobrevivência. 

A China, sem ter mexido uma palhinha, vai por aí acima. 

É melhor tomarmos consciência de que, mesmo sem termos os russos a invadir-nos as praias, vamos ter uma vida bem mais difícil.

É a vingança do chinês...