Há duas semanas, no meu artigo Os dez dias que mudaram a América, falei no grande impulso que Trump recebeu com a tentativa de assassinato, que o tornou uma espécie martir (“salvo pelo Todo Poderoso”) e a gloriosa cerimónia da Convenção republicana, a 18 de Julho em que foi ungido o seu vice e sucessor J.D.Vance.

Mas, imediatamente a seguir, no dia 21 de Julho, Joe Biden desistiu da sua candidatura, transferindo-a para a vice-Presidente, Kamala Harris, num gesto muito desejado pelos democratas, mas completamente inesperado para os republicanos - daí o tíulo que escolhi para o artigo, relembrando o famoso livro de John Reed sobre o tumulto da revolução bolchevista de 1917.

Em 20 de Julho, era reconhecido tanto por republicanos como por democratas que a vitória de Trump estava praticamente assegurada. Foi nesse pressuposto que Donald escolheu o seu vice, fora dos padrões históricos que determinam a indigitação para o cargo. Quais são esses padrões? Uma pessoa que não faça sombra ao futuro presidente, mas que lhe traga votos em áreas onde ele tem pouca tracção. Para dar dois exemplos mais recentes, o jovem Obama escolheu o sénior Biden porque trazia a experiência de décadas no Congresso e uma reputação de negociador firme e diplomático; o urbano e pouco virtuoso Trump escolheu Pence (o seu vice no mandato de 2016 a 2020) porque vinha do interior agrário e fortemente religioso. Outros exemplos poderia dar, e outras considerações terão sido levadas em conta nestas e outras escolhas, mas o essencial era isto.

Ora, Trump, com vantagem nas sondagens em todos os Estados-chave (aqueles que têm mais eleitores e mais devotos), escolheu um vice que não lhe trazia votos adicionais - o Ohio já era um Estado definitivamente “vermelho” - e que tinha ideias ainda mais reacionárias, racistas e tradicionalistas, não indo buscar nenhum voto moderado. (Os votos ditos “moderados”, ou “indecisos”, são aqueles que, em última análise, decidem as eleições em qualquer país.)

J.D. Vance, que já tinha sido anti-trumpista (como quase todos os republicanos tradicionais) e que até tinha chamado ao seu novo guru “o Hitler americano”, entretanto fez uma volta de 180º e passou a propagandear uma agenda que nem Trump se preocupava em defender - chegou a propor, em 2022, que o aborto devia ser ilegal em qualquer situação - assim como era ainda mais vocal nos mantras trumpistas, nomeadamente em temas de imigração e de defesa dos empregos dos verdadeiros americanos - isto é, brancos e operários.

(Não resisto a lembrar esta nota marginal: Trump já foi casado com duas imigrantes e Vance é casado com uma filha de imigrantes. Mas nem todos os imigrantes são iguais, evidentemente…)

É geralmente reconhecido que o vice não acrescenta muito ao candidato principal, embora esta opinião não seja unânime; em vez de acrescentar pode diminuir - caso de Spiro Agnew, primeiro vice de Nixon, que foi corrido por “conspiração criminosa, suborno, extorsão e fraude, ou Dan Quayle, vice de Bush pai, que ficou para o anedotário nacional pelas gaffes e disparates que dizia.

Quanto a J.D.Vance, a impressão geral, é que foi escolhido para ser o sucessor de Trump, tornando assim o Trumpismo uma doutrina que ultrapassará o seu fundador. Tem apenas 40 anos e é um homem energético, sempre confrontacional, enquanto Trump, com 78 anos e já bastante confuso nas suas diatribes, não tem grandes chances para 2028 - isto se vencer em 2024 e se não for condenado por mais malfeitorias, falências, e outras aldrabices que agora parecem não impressionar os seus fiéis, mas que o tempo se encarregará de estafar.

Ninguém tem mais saudades de  Biden do que Trump

Foi então que aconteceu o volte-face: Biden reconheceu que não está capaz e saiu da corrida ainda antes da convenção democrática que terá lugar de 19 a 22 de Agosto e, sobretudo, antes de comparecer ao segundo debate com Trump, marcado para 10 de Setembro. Kamala Haris foi recebida com um enorme entusiasmo, não só pelos fiéis democratas como pelos eleitores em geral. Só nas primeiras horas após o anúncio da sua candidatura recebeu mais de 130 milhões de dólares, 66% de novos doadores.

(Nos Estado Unidos, onde as campanhas são muito dispendiosas, o valor das doações aos candidatos é indispensável, além de servirem de sondagem informal da sua popularidade.)

Trump ficou publicamente desorientado com a mudança de adversário. Por um lado porque estava à espera de uma campanha fácil contra Biden; por outro porque não estava preparado para uma candidata muito mais popular e contundente, como Harris mostrou imediatamente que ia ser.

Vale a pena citar aqui Susan B. Glasser, jornalista extraordinária da revista “The New Yorker: Não há ninguém, com a possível excepção do próprio Presidente, que não tenha ficado mais de luto pelo fim da campanha eleitoral de Biden, do que Donald Trump. Durante dezoito dias Trump recusou-se a abrandar a sua tristeza, alternando entre a fúria e a negação pela perda do seu alvo preferido. Na terça-feira, aparentemente assustadíssimo com a subida de Kamala Harris nas sondagens e a decisão de escolher Tim Walz, um governador muito popular no “Midwest”, como parceiro, Trump barricou-se no seu palácio de Mar-a-Lago e exigiu que Biden voltasse a concorrer. Num post bizarro nas redes sociais, o ex-presidente elocubrou que Biden estava tão arrependido do seu “erro histórico trágico” que poderia aparecer na Conenvenção Nacional Democrática e exigir voltar a ser o candidato.”

Vale a pena transcrever aqui o post de Trump, pelo que demonstra de perturbação mental, para lá da habitual agressividade. Faço uma tradução livre (é difícil encontrar sinónimos para certas inanidades) e transcrevo a íntegra em inglês:

“Quais são as hipóteses de que o Vigarista Joe Biden, o PIOR Presidente da História dos E.U.A, cuja presidência foi constitucionalente ROUBADA por Kamabla (SIC), Barack HUSSEIN Obama, a Doida da Nancy Pelosi, o Titubeante Adam Schiff, o Chorão Chuck Schumer e outros da esquerda Lunática, INVADA a Convenção Democrata Nacional e tente ganhar novamente a Nomeação, começando por me desafiar para um novo DEBATE?”

Agora o original:

“What are the chances that Crooked Joe Biden, the WORST President in the history of the U.S., whose Presidency was Unconstitutionally STOLEN from him by Kamabla, Barack HUSSEIN Obama, Crazy Nancy Pelosi, Shifty Adam Schiff, Cryin’ Chuck Schumer, and others on the Lunatic Left, CRASHES the Democrat National Convention and tries to take back the Nomination, beginning with challenging me to another DEBATE,”

(Cabe aqui perguntar em que país “normal” um candidato a Presidente escreve uma coisa destas e ainda haja quem o oiça.)

Trump ainda foi a um debate da Associação dos Jornalistas Negros Americanos onde se espalhou forte e feio. Começou por dizer que não tinha a certeza se Kamala era negra; “Ela sempre foi indiana e agora é que aparece a ser negra, para ganhar mais votos”. Isto, dito para esta audiência, é bastante mais do que uma gaffe. Além disso acontece que Kamala Harris, filha de uma indiana de etnia tamil e de um jamaicano, sempre se afirmou como negra e até frequentou a Univerdade Howard, exclusiva para negros.

Esta quinta-feira, dia 8, Kamala finalmente anunciou o seu vice. É o Governador do Estado da Minnesota, Tim Walz. Por um lado obedece às normas já enunciadas para a escolha dum vice, complementar (homem e branco) e de um Estado importante; por outro é exactamente o oposto de J.D.Vance no que toca a currículo, opiniões, e atitude. Não vou aqui dar os básicos da sua carreira, mas posso acrescentar que é o típico homem simples, honesto e directo que caracteriza um certo arquétipo (quiçá idealizado) do americano do interior, dedicado à sua comunidade, decisor de bom-senso, cordato e aberto ao diálogo. Ou seja, de certo modo contraria a percepção do eleitorado, sobretudo trumpista, de que os democratas são uma elite urbana distanciada da realidade do país profundo.

Nas aparições em conjunto, tanto Kamala com Walz riem-se muito e mostram uma boa disposição solar, completamente diferente da seriedade e agressividade do outro lado.

Por outro lado é o que nos Estados Unidos se chama de liberal; a favor de subsídios aos mais carenciados, educação gratuita, interrupção voluntária da gravidez, aceitação e aculturação dos imigrantes, pró LGBTQ+, contra a censura nas livrarias e instituições de ensino (sim, nos Estados Unidos há quem seja a favor da censura, em nome da “preservação dos valores cristãos” e da “pureza” das crianças), e mais todos aqueles valores que a ala trumpista diaboliza como sendo ideias “socialistas”, comunistas e prevertidas.

Walz (diz-se “wall”, como parede) começou muito bem, chamando aos republicanos em geral e a J.D. Vance em particular “esquisitos”. A palavra inglesa, “weird”, é de uso comum, e nem sequer insultuosa, mas dita assim, como único adjectivo para um grupo de pessoas, fica engraçada, marota, e pegou imediatamente. (Em português também pode ser “estranho” ou “bizarro”.) Logo surgiram milhares de memes na Internet com demonstrações da esqusitiçe de certas ideias republicanas, trumpistas e do famigerado Projecto 2025 - que Trump tanto diz desconhecer como discordar, conforme as audiências.

Nas aparições em conjunto, tanto Kamala com Walz riem-se muito e mostram uma boa disposição solar, completamente diferente da seriedade e agressividade do outro lado.

Será muito interessante assistir aos debates. E acompanhar as perípécias dos quase cem dias que se seguem.

Agora, e infelizmente, não consigo mudar a minha expectativa: se Trump perder, não vai aceitar pacificamente. A hipótese de distúrbios de baixa intensidade (há 1,2 armas de fogo por habitante) é bem real, a partir de 6 de novembro, o dia seguinte das eleições americanas.