A crise de saúde pública causada pela covid-19 foi o tema que mais marcou o ano de 2020. Trouxe inúmeros novos desafios e veio exacerbar desigualdades, atingindo desproporcionalmente as pessoas que já se encontravam em situação de vulnerabilidade. A vacina trouxe uma (grande) luz ao fundo de um longo túnel. Já sabemos que não trará uma solução imediata, mas pode significar um início da mesma. Ao mesmo tempo, marca também o início de um dos grandes desafios da humanidade: o acesso aos tratamentos e vacinas para resolver a pandemia provocada pelo novo coronavírus será uma das maiores questões de direitos humanos dos anos vindouros.

A saúde e a sobrevivência de milhões de pessoas dependem de uma vacina que seja segura e eficaz, disponível de forma oportuna e equitativa, que proteja o direito à saúde e permita que as economias se reabram e que a vida seja retomada. É o exemplo mais claro de um bem público global, com impacto direto na saúde e na prosperidade de todas as pessoas. No entanto, existem enormes riscos de que não esteja universalmente disponível, ou não seja financeiramente acessível.

Quem tem acesso a uma vacina, quando, por que ordem, a que preço e em que condições são algumas das questões mais significativas e potencialmente contestadas que a nossa sociedade enfrenta. Estas questões podem vir a ser moldadas pelos interesses de Estados e empresas poderosas, revelando e exacerbando profundas desigualdades. É preciso, desde já, que tudo seja feito para que isto não venha a ser a realidade. É preciso garantir que as vacinas sejam uma solução e não um agravar ainda maior de desigualdades.

Ao nível local e nacional, cada país deve priorizar o respeito pelos direitos humanos no momento de decidir quem é vacinado primeiro. Considerando a limitação das primeiras quantidades, quem está mais em risco deve ter prioridade: profissionais de saúde, pessoas mais idosas e pessoas em risco devido a questões de saúde. É preciso ainda que, em cada caso, seja feita uma análise das comunidades em situações de maior vulnerabilidade e risco de contágio, tendo em conta fatores como as condições de vida ou trabalho, as condições económicas, de habitação e saneamento, entre outras.

Mas a nível global existem também grandes desafios, com uma diferença substancial no acesso à vacina entre países mais ricos e países que não a podem pagar. Dados atualizados mostram que as nações ricas, que representam apenas 14% da população mundial, compraram 53% de todas as vacinas com resultados mais promissores até agora. Para estes países, isso significa que têm doses suficientes para vacinar as suas populações inteiras quase três vezes até ao final de 2021, se todas as vacinas atualmente em testes clínicos forem aprovadas para uso. Destes, o Canadá lidera a tabela com vacinas suficientes para vacinar cada pessoa cinco vezes. Até agora, das vacinas que já estão a ser administradas e por isso mais conhecidas, todas as doses da Moderna e 96% da Pfizer / BioNTech foram adquiridas por países ricos.

Por outro lado, 67 países mais pobres só serão capazes de vacinar uma em cada dez pessoas ao longo do ano de 2021, a menos que sejam tomadas ações urgentes pelos governos e pela indústria farmacêutica para garantir a produção de doses suficientes. Isto significa que estes países, entre os quais se encontram Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor-Leste, nem sequer poderão vacinar a população em maior risco e profissionais de saúde. Em alguns destes casos, a incidência da pandemia é bastante grave: cinco destes 67 países - Quénia, Mianmar, Nigéria, Paquistão e Ucrânia - relataram quase um milhão e meio de casos entre eles.

Por isso, a nível global, é essencial uma resposta concertada, de responsabilização partilhada entre Estados, que têm de priorizar a cooperação global sobre um potencial ‘nacionalismo da vacina’. Mas a responsabilidade é também das principais empresas farmacêuticas, que têm de cumprir responsabilidades de direitos humanos e garantir o acesso mais amplo possível às suas inovações. A tecnologia e a propriedade intelectual sobre as vacinas têm de ser partilhadas e abertas para que se consigam produzir mais doses, de forma segura e eficaz, e para que possam estar disponíveis a quem precisa e não apenas a quem pode pagar.

De um ponto de vista puramente da responsabilidade sobre o investimento feito, as farmacêuticas recebem fundos públicos para investigação, em especial as três vacinas que já provaram ser eficazes receberam mais de 5 milhões de dólares de financiamento público. E por isso, o conhecimento produzido com esse financiamento, ainda mais num momento em que precisamos de uma resposta desta magnitude, tem de ser partilhado. Mas não é só isso: as empresas farmacêuticas têm de compreender a sua responsabilidade e o seu papel preponderante nesta fase, e colocar a vida das pessoas acima dos lucros.

Quanto aos governos, em especial dos países mais ricos, é essencial que compreendam a sua responsabilidade e as suas obrigações de direitos humanos. Não se podem só abastecer de doses de vacina, sem ter em consideração que podem prejudicar o acesso à vacina noutros lugares. Têm antes de ter um papel ativo na cooperação e prestar assistência aos países que dela necessitem e fazer tudo ao seu alcance para garantir que as vacinas sejam um bem público global e sejam distribuídas gratuitamente, com base nas necessidades.

Infelizmente, parece que muitos dos países mais ricos não compreendem esta urgência e necessidade. Em outubro de 2020, a Índia e a África do Sul solicitaram uma derrogação que permitiria aos países não conceder nem fazer cumprir patentes e outros direitos de propriedade intelectual em produtos para combate à covid-19 até que a imunidade de grupo global fosse alcançada. Enquanto um número significativo de países com rendimentos médio e inferior apoiaram esta proposta (99, no total), a oposição veio de grande parte dos países com maiores rendimentos, entre os quais os Estados Unidos da América, o Japão, o Reino Unido e o Canadá.

Tal parece indicar que estes países mais ricos não estão dispostos a reconhecer o seu papel preponderante neste momento, o que pode tornar-se numa repetição do erro cometido com o monopólio dos medicamentos antirretrovirais para o HIV que, no auge da epidemia, permitiram o acesso ao tratamento para pessoas nos países mais ricos, enquanto milhões de pessoas em países mais pobres continuaram a morrer.

É por tudo isto que a vacina traz para 2021 uma grande esperança, mas também uma grande responsabilidade. É preciso que os mecanismos de implementação desta resposta à maior crise recente que a humanidade enfrenta seja sempre e totalmente assente em padrões pautados pelos direitos humanos. Só assim ela será realmente a resposta que precisamos, só assim ela trará a garantia da manutenção da nossa humanidade.

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