O acordo de incidência parlamentar entre o PSD e o Chega que deu origem à formação de um novo governo regional nos Açores levanta múltiplas questões de natureza política e representa uma viragem histórica na democracia portuguesa, alargando o espectro do poder à direita. Deixando para outros espaços representações mais globais sobre o seu significado, proponho que nos centremos aqui naquilo a que Rui Rio e André Ventura, numa afinação assinalável, chamaram o fim da “subsidiodependência”, um aspeto central no esforço de convergência entre os programas dos dois partidos.

Rio, enquanto autarca do Porto, assumiu-se já no passado como um destacado combatente contra a “subsidiodependência”, num período que resultou numa razia sem precedente na vida cultural da cidade, associada a imposições anti-democráticas que visavam limitar contratualmente as críticas à autarquia vindas de todas as organizações que beneficiavam de subsídios concedidos pela câmara. Ventura aderiu à causa com um vigor idêntico.

A expressão em si, a começar pela sua origem na palavra toxicodependência, está carregada de símbolos. Mas o qual é o significado, em concreto, da “subsidiodependência” e qual é, especificamente, a consequência do seu fim nos Açores?

Em 2019, aproximadamente 10,2% dos açorianos receberam Rendimento Social de Inserção (RSI) — um número muito superior à média nacional, que ronda os 3%. No caso do município de Ribeira Grande, na costa norte de São Miguel, essa taxa ascende a 22%. Nos termos do PSD e do Chega, como, aliás, do CDS, do PPM e da Iniciativa Liberal, este é o epicentro da “subsidiodependência” em Portugal.

Mas significarão estes dados um especial privilégio da população de Rabo de Peixe, Ribeira Seca ou Santa Bárbara face ao resto do país? Não, significam que esta população é muito pobre e que mesmo após transferências sociais continua a ser muito pobre. Isto é, aplicando as mesmas regras para a concessão de apoios que são aplicáveis indiferentemente a todo o país, há nos Açores muitos mais beneficiários de rendimentos sociais do que noutras partes, não porque os açorianos sejam particularmente beneficiados, mas porque há nos Açores muitas mais pessoas elegíveis - leia-se, muitas mais pessoas pobres ou em risco de pobreza.

Segundo dados do INE, os Açores têm a taxa mais elevada de risco de pobreza ou exclusão social do país (em 2019, 36,7%), muito acima da média nacional (21,6%), a maior taxa de privação material severa e os salários mais baixos. Esta circunstância não é culpa dos açorianos, não decorre de uma originalidade sua, de um traço genético, de um fator ambiental. A pobreza é um fenómeno estrutural, tem uma história que está estudada e documentada, e decorre, entre outros fatores, da condição hiper-periférica, insular e dispersa do arquipélago, bem como da exposição à intempérie. Ainda há um ano, por exemplo, na sequência do Furacão “Lorenzo”, as ilhas das Flores e do Corvo atravessaram um longo período sem ligação marítima e com ligação aérea intermitente, o que provocou uma crise energética e de abastecimento que remeteu para os longos períodos de isolamento de há poucas décadas.

As famílias beneficiárias de subsídios, muitas delas trabalhadoras, com salários miseráveis e com dependentes menores, são destes subsídios “dependentes” para, por exemplo, terem alimentação. É esse o grau de “dependência.” Em média, cada beneficiário de RSI nos Açores recebe a impressionante quantia de €84,61 por mês. Sim, a contenda de Rio e Ventura é motivada por €84,61 (em média) de apoios sociais que retiram milhares de pessoas da miséria e da privação extrema, num total de 22 milhões anuais (valor aproximado), no mesmo país onde se esbanja de cruz milhares de milhões na “estabilização do sistema bancário” ou na recuperação de uma transportadora aérea cuja viabilidade é, na melhor das hipóteses, incerta.

Com uma soberba continental, ainda não tinham aterrado nos Açores, Rio e Ventura já ditavam o seu veredicto: os açorianos estão agarrados aos subsídios, viciados em RSI e (para que não haja dúvidas) contrapõem com “mais emprego”, que é como quem diz “Vão mas é trabalhar, açorianos!” É neste ponto que o acordo PSD-Chega é, acima de tudo, um insulto aos Açores: por um lado, ignora as matizes de uma realidade social complexa e o papel determinante desempenhado pelos rendimentos sociais em retirar pessoas reais da pobreza, papel esse que está estudado e objetivamente comprovado; por outro, laboram no senso comum e em preconceitos enraizados, que exploram sem qualquer pudor para benefício próprio, numa campanha de estigmatização da pobreza e de humilhação dos pobres.

Com maior ou menor sucesso, ao longo das últimas décadas, a Região Autónoma dos Açores foi governada por PSD e PS com base num consenso alargado sobre a importância do estatuto autonómico e sobre as obrigações do Estado Português em apoiar os açorianos no objetivo de mitigar os efeitos decorrentes da sua condição geográfica. Na base dessas políticas estiveram, desde sempre, os subsídios diretos e indiretos: uma carga fiscal reduzida, apoios à exploração, financiamento à mobilidade e à integração e apoios sociais. Apesar de ainda haver um longo caminho pela frente e de o caminho até aqui não ter sido linear, essa estratégia de convergência teve resultados. Em todos os índices — económicos, culturais, educacionais —, os Açores são hoje um território incomparavelmente mais desenvolvido e os açorianos não estão, agora, condenados à escolha entre a pobreza e a emigração.

Sabemos bem que do discurso à prática vai uma longa distância e que, para Rio e Ventura, os Açores são marginais nos seus horizontes. Mas impressiona-me a desumanidade, frieza e indiferença com que os açorianos – um povo com um passado de enormes dificuldades, forjado pelo instinto de resistência às adversidades que desde logo a natureza impõe –, são instrumentalizados para uma guerra sem sentido que visa exclusivamente virar uns contra os outros e todos contra todos.