Na nossa língua, parece tudo simples: temos «livro» e, para fazer o plural, martelamos um «s» no fim: «livros». A regra é aprendida naturalmente nos primeiros anos de vida. Tanto é assim que, se dermos uma palavra inventada a uma criança de 5 anos, ela saberá fazer-lhe o plural: «um bavo»? Logo, «dois bavos». As regras serão um pouco mais complicadas aqui e ali – principalmente no que toca às palavras terminadas em «l» –, mas aprendemos tudo sem espiga. Não parece haver muito mais para dizer…

Há sempre algo mais a dizer! A última letra da palavra «livro» já não é lida como «o» há muito tempo. As crianças, nos primeiros anos, aprendem que o «o», em certas posições, lê-se «u». Mas, no caso de «livro», já nem um verdadeiro «u» se mantém ali.

Repare o leitor: ao dizermos a letra «u» em separado, arredondamos os lábios. Experimente: «a», «e», «i», «o», «u». Na última das vogais, os nossos lábios fazem o gesto do beijo. O «u» é uma vogal de lábios arredondados.

Pois bem, quando dizemos «livro» já só arredondamos os lábios se dissermos a palavra de forma muito pausada e artificial. Quando conversamos, os lábios não se arredondam e, muitas vezes, a vogal nem dá um ar da sua graça. Experimente: diga a palavra no meio duma frase qualquer. Ou bem que o «u» desaparece – ou está lá, mas com os lábios planos, sem beijinho que se veja.

Há quem jure que não! Que o «u» está lá! Mas quando alguém se atreve a gravar e a analisar o som, percebemos que já só temos cinzas de «u». A vogal ardeu…

Mas porque não reparamos nós nisto? E porque ouvimos o «u», mesmo quando não o dizemos? Nós ouvimos o «u» porque sabemos que há ali uma letra, na escrita – que até é um «o», mas isso é um pormenor.

A maneira como imaginamos as palavras obriga-nos a ouvir sons que já não estão lá ou estão apenas num mero sopro, praticamente imperceptível. O aspecto das palavras no papel influencia a maneira como ouvimos os sons numa conversa.

Agora, o plural. Para fazer o plural de «livro», pomos o tal «s» («livros»). No entanto, não o lemos como um «s». Em Portugal, a letra é lida com o som /ch/, /j/ ou /z/ dependendo da palavra que vem a seguir.

Sim, se eu disser «os livros todos», o som que ali está no final da palavra «livro» é um /ch/. Tecnicamente, isto acontece porque a consoante que inicia a palavra seguinte é surda e, por isso, a consoante do final de «livros» também fica surda. Já se dissermos «os livros dados», o som é /j/ porque /d/ e /j/ são consoantes sonoras. (Estou a usar dois termos técnicos da linguística: uma consoante pode ser sonora ou surda dependendo se faz ou não vibrar as cordas vocais.) Já se a palavra seguinte começar por vogal, o som da última letra de «livros» será /z/: «os livros abertos».

Mas o mais curioso do plural de «livros» é isto: a vogal também se transforma. Quando dizemos o plural de «livro», o som /u/ do final da palavra tende a arredondar um pouco mais do que no caso do singular. Ora, experimente lá: «os livros». No final, os seus lábios não se arredondam? (Arrisco aqui um pouco: os leitores desta crónica são pessoas interessantes, espalhadas pelo país e pelo mundo e terão, cada uma delas, uma forma particular de pronunciar os sons; assim, talvez isto não funcione com toda a gente. Mas, aqui na minha cara, os lábios formam o tal beijinho quando digo «livros».)

Peço que o leitor oiça com atenção um madrileno a dizer «libro». Ali, o «o» é mesmo um /o/. Nada de /u/. E o «s»? É um /s/, pois então. Sim: as letras correspondem sem grande complicação aos sons.

Olhemos para o catalão. «Livro» é «llibre». O «e» lê-se como um /â/. A um português, a palavra soará como /lhíbra/. O plural desta palavra não será difícil de adivinhar: «llibres». Mas há outras palavras catalãs em que o plural tem mais que se lhe diga: por exemplo, «la dona» (a mulher) fica, no plural, «les dones» (as mulheres). O plural feminino escreve-se com «e». Mas como se lê /â/, na oralidade, não notamos essa diferença – excepto nalgumas variantes da língua, onde aquele «e» final é mesmo lido como /e/.

Em francês, voltamos a ter um «v». «Livro» é «livre». E o plural? «Livres», pois então. Ah, mas depois pedimos a um francês para ler a palavra e ficamos baralhados. «Livre» e «livres» lêem-se da mesma maneira! O «s» está lá – mas é como se não estivesse.

Em italiano? O plural italiano já não é um simples «s»… «Libro» passa a «libri». O plural, em italiano, é marcado – em geral – pela mudança da vogal.

Não podemos passar por todas as línguas latinas, mas ainda quero ir a Bucareste: como será «livro» em romeno? Aqui a coisa torna-se muito interessante. Não tanto pelo plural – já lá chegamos –, mas pela forma da palavra. Pois quem diria que, em romeno, «livro» é «carte»?

Mais: se eu quiser dizer «o livro», então a palavra será «cartea». Sim, o artigo definido não é uma palavra que se ponha antes do substantivo, mas uma espécie de sufixo que se acrescenta a esse mesmo substantivo… Esta característica curiosa do romeno aproxima a língua das outras línguas dos Balcãs. Ou seja, é uma regra gramatical característica de uma região inteira, ultrapassando as fronteiras entre famílias de línguas. Não interessa se a língua é eslava ou latina – o que interessa é que está ali naquela península. Assim se percebe que as línguas não trocam apenas palavras ou expressões: também emprestam umas às outras pedaços de gramática.

E o plural de «carte»? Aqui está: «cărți»

Na verdade, só o quis deixar aqui para mostrar como os romenos conseguem pôr cornos no «a» e uma vírgula debaixo do «t».

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Já que estamos a dar a volta ao Mediterrâneo, passemos para o outro lado e vejamos como se diz «livro» em árabe. Não vou usar o alfabeto árabe – direi apenas que a forma simples de «livro» é: «kitāb». E o plural? É assim: «kutub». Exacto: em árabe, o plural pode implicar a mudança de todas as vogais da palavra. O artigo é o nosso conhecido «al» (de Algarve, por exemplo) e, assim, «o livro» será «al-kitāb» e «os livros» serão «al-kutub».

O que talvez nos surpreenda ainda mais é outro aspecto da gramática árabe: além do singular e do plural, o árabe tem o dual. Assim, quando falamos de dois livros, a forma correcta será: «kitābayn». Tudo isto ainda se torna mais complicado se conjugarmos os vários plurais com os casos que a língua tem.

Diga-se que o descrito acima se aplica ao árabe padrão – na rua, o que se fala é já muito diferente. Os árabes conservam uma versão antiga da língua na escrita e nas situações formais, ao lado de verdadeiras línguas diferentes na oralidade – tão distantes umas das outras como as línguas latinas. Se um marroquino conversar com um iraquiano na língua que usa para falar com os filhos, terão dificuldade em entender-se. No entanto, estas diferenças não são inteiramente reconhecidas pelos próprios falantes – existem, mas como a língua oficial tem um só nome e uma norma que se vê na escrita e na escola, as línguas que existem apenas na oralidade são como que invisíveis.

O que se passa nos países árabes é algo semelhante ao que se passou no Sul da Europa durante grande parte da nossa História: as línguas que falávamos em casa eram já formas muito alteradas duma língua comum, mais antiga. No entanto, essa língua comum – o latim – mantinha-se, na sua forma clássica, como língua oficial, transmitida através do ensino, dos governos e da Igreja.

Se quisermos imaginar uma situação semelhante no presente, podemos imaginar um mundo em que a língua oficial dos vários países latinos continuasse a ser o latim, mas todos falássemos português, espanhol, francês, etc., na nossa vida pessoal.

Todos teríamos sido educados em latim, leríamos jornais em latim, escreveríamos em latim e, provavelmente, nem acharíamos estranho falar uma língua em casa e outra na escola.

Tal como os árabes, também nós comunicaríamos sem dificuldade com italianos, romenos, espanhóis e franceses, usando nesses casos o latim clássico. Entre portugueses, usaríamos o vernáculo português, em toda a sua variedade regional e social. Se nos perguntassem, diríamos que a nossa língua é o latim, ponto final.

Alguns autores mais virados para o povo utilizariam o vernáculo na literatura, haveria um ou outro programa de rádio na língua informal, mas os tribunais, as televisões, o governo, tudo isso seria em latim. Talvez um político ou outro usasse o português para bater mais fundo no coração do povo.

Esta situação é aquilo a que os linguistas chamam diglossia: uma situação em que duas línguas ou dois dialectos coexistem numa mesma sociedade, mas são usados em contextos sociais diferenciados. Acontece nos países árabes, mas acontece também, por exemplo, na Suíça de língua alemã, onde o alemão oficial é usado em muitas situações formais, mas todos falam entre si, fora dessas situações formais, em suíço-alemão – uma língua bastante diferente. A situação consegue ser complexa a este ponto: é possível que um professor universitário use o alemão quando está a dar uma aula, mas passe a usar o suíço-alemão quando está a conversar, em privado, com os alunos.

Na prática, todas as línguas sofrem um fenómeno parecido, em maior ou menor grau: o português formal e o português escrito não são iguais ao português informal, bem mais variado, para dizer a verdade. No Brasil, esta diferença é ainda mais marcada.

Voltando aos países árabes: o que temos é uma língua oficial comum, com uma longa literatura, transmitida pelo sistema de ensino e usada na escrita e uma série de variadíssimos dialectos ou línguas orais – chamemos-lhes o que quisermos.

A comunicação entre todos está garantida pela aprendizagem da língua oficial, mas as línguas em que as mães falam com os filhos já são outras.

Apesar disso, a população não considera a situação anormal: é tão natural como, para um português, usar palavras da sua terra quando vai visitar os avós. A designação de árabe abrange não só a língua clássica e o padrão oficial – o árabe moderno padrão, que já não será o puro árabe clássico –, mas também todos os vários árabes coloquiais.

A resposta à pergunta «que língua fala?» será sempre «árabe», mas por trás temos esta estranha e intrigante situação.

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Já fomos ao outro lado do Mediterrâneo. Entremos de novo no mar em direcção a Malta. O maltês, uma das línguas oficiais da União Europeia, é aparentado com o árabe. Assim se compreende que «livro», em maltês, seja «ktieb». E no plural? Aqui está: «kotba». 

Já que estamos em Malta, olhemos para o inglês, que também é oficial por lá. A palavra «book» era, em inglês antigo, «bōc». O plural era assim: «bēċ».

Ou seja, o plural também era marcado por mudanças de vogais no meio da palavra, tal como no árabe. Hoje em dia, a palavra «book» passa, no plural, a «books» – mas há outras palavras em que os ingleses ainda têm destes plurais. Por exemplo, «goose» passa a «geese» e «foot» a «feet». São destroços gramaticais de fases anteriores da língua.

A gramática duma língua parece feita de pedra: é assim porque sempre foi assim. Mas não, claro. Vai mudando. Há regularidades que se vão desfazendo – o plural antigo do inglês – e outras que vão aparecendo e substituindo as anteriores. O resultado é um conjunto de regularidades e irregularidades que são o próprio material da gramática. Esta relação curiosa entre regras e excepções vê-se, por exemplo, na maneira como as crianças aplicam as regras gerais a palavras irregulares. Assim, no caso do inglês, é provável que alguma criança comece por dizer «gooses» até aprender que é «geese». A mente infantil absorve o que é sistemático e só depois o que é irregular. Se, por acaso, a irregularidade estiver numa palavra muito rara, é bem provável que desapareça – a certa altura os falantes esquecem-se de que havia ali algo de diferente e aplicam a regra geral. A regularidade começa a alastrar pela língua. Ah, mas a coisa é ainda mais deliciosa: de vez em quando, por causa das diferenças entre falantes, uma regra começa a abanar e surgem excepções, complicações. Algumas delas desaparecem, trucidadas pela força da regra geral. Mas outras começam a espalhar-se e, de repente, temos irregularidades onde não havia. Depois, essas mesmas irregularidades conseguem, em certos casos, tornar-se a regra geral. Imagino que foi esse o processo que levou o «s» no final das sílabas portuguesas a ser lido – de forma hoje perfeitamente regular – como / ch/, /j/ ou /z/. 

Depois, temos aqueles casos – como as línguas dos Balcãs – em que as regras gramaticais saltam de língua para língua, alastrando por uma região inteira.

É um jogo complexo, que decorre ao longo de séculos sem que ninguém o controle – e, para dizer a verdade, sem que quase ninguém note –, para lá das irritações que as pequenas mudanças provocam. O uso da língua, tão imediato e útil, está sujeito a não sei quantos mitos: afinal, temos tanto para dizer e para fazer que não temos tempo para reparar como, de facto, usamos a língua ou como ela muda ao longo das gerações. É por isso que a língua é terreno fértil para mitos e simplificações – mas é também um terreno propício à exploração de quem gosta de saber mais sobre o mundo.

Boas Festas e um 2021 com muitos livros!

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Pontuação em Português.