Há uns dias, o nosso filho mais velho decidiu meter-se no meio de nós, à noite, antes de ir dormir. Pusemo-nos a conversar e a ver um episódio de uns quaisquer desenhos animados, quando nos lembramos de fazer um jogo: eu desenhava qualquer coisa e o meu filho tentava adivinhar o que era. O jogo tem mais graça do que parece — porque eu desenho irremediavelmente mal.

Depois de pontes, casas, praias, dinossauros, cães, livros e outros objectos e paisagens, o Simão pediu-me para desenhar Portugal.

Confesso que teria sido mais fácil desenhar o nosso país do que um cão, pois ao lado da minha inata falta de talento para o desenho, tenho uma capacidade absurda de desenhar mapas de países e continentes de cabeça. Se quiserem, desenho aqui uma França! Uma China! Um Paraguai, até! (Este último será já com algum suor na testa, que as fronteiras da América do Sul não são pêra assim tão doce.)

Ir à escola sem sair da cama

Podia ter desenhado o nosso país — mas lembrei-me doutra maneira de mostrar os contornos de Portugal. Decidi mostrar à criança uma daquelas maravilhas que nos surpreendiam há alguns anos, mas de que, no entretanto, nos esquecemos: o Google Earth.

Hoje, parece-me ser mais habitual usar o Google Maps no dia-a-dia, porque dá jeito para saber como está o trânsito ali à frente (a rádio nem sempre acomoda as nossas necessidades individuais).

Mas o Google Earth é outra coisa... Quando o meu filho percebeu que tinha ali o planeta na mão, que podia aproximar e recuar, brincar e voar até onde quisesse, ficou de boca aberta: como é que nunca lhe tínhamos mostrado aquilo?

Lembrei-me do meu encanto quando descobri os mapas e os atlas na casa dos meus pais: viajar com os dedos é um prazer difícil de explicar. Enfim, neste caso o mapa está num ecrã, mas o encanto não é assim tão diferente.

O miúdo olhou para a fronteira de Portugal, perguntou onde era Lisboa e quis imediatamente ver a nossa casa: lá aproximei o olhar de satélite da nossa rua e apontei para o prédio.

Ele ficou contente, mas quis mesmo ver o nosso prédio. «Ora, está aqui! É este o telhado.» Não servia: tinha mesmo de ser a janela dele.

Felizmente, a Google mandou um carro andar por aí às voltas (cheguei a vê-lo, um dia, a dobrar uma esquina aqui perto) e, assim, pude carregar no mapa e ver as duas dimensões da vista de satélite a transformarem-se numa fotografia do nosso prédio.

Ele ficou espantadíssimo ao olhar para a janela do seu próprio quarto depois dum voo pelo planeta! Quis ir, assim, com o dedo, até à escola — a viagem que fazemos todos os santos dias. Com o mundo nas mãos, o rapaz quis fazer no ecrã o que faz todos os dias ao vivo.

Enfim, lá avancei pelas ruas de Lisboa — e ele começou aos gritos de alegria quando chegou à escola sem sair da cama dos pais. Quis ver a escola de cima. Quis ver a janela da sala dele. Quis voltar para casa outra vez com os dedos, devagar, avançando pelo Street View aos poucos. Quem já experimentou, sabe que é possível percorrer as ruas como se lá estivéssemos — mas demora.

Eu já maldizia o segundo em que me lembrara desta maravilhosa forma de me aborrecer.

Um salto ao Japão

Depois, felizmente, passou-lhe a pancada da repetição da rotina em versão virtual. Pediu-me para visitar o Japão — mais propriamente, o sítio donde viera uma das prendas de Natal, um dos famosos Beyblades. É o que dá contar aos filhos que o Pai Natal vai buscar prendas ao Japão.

No nosso voo por aquele arquipélago, vimos como se maravilhava com Tóquio, com o contorno das ilhas, com a estranha forma dos nomes das terras — enquanto eu procurava a morada da tal loja donde viera o brinquedo. Sim, sem querer obrigámos o Pai Natal a trazer um brinquedo do Japão, pois encomendámos o dito numa certa loja inglesa, sem perceber que a encomenda viria do outro lado o mundo...

Pesquisei a morada e acabámos por aterrar em Kagoshima, no sul do Japão, numa rua indistinta de casas muito bem arranjadas. Lojas ou fábricas de brinquedos? Nem vê-las — alguém tem um negócio internacional de brinquedos a partir da cozinha.

Do Japão, seguimos para a casa dos avós, em Ponte de Sor.

Depois, fomos à casa onde cresceram os primos, em Leiria.

Seguimos para Peniche, para sobrevoar a casa dos meus pais.

Fomos ainda passear até à terra da prima dele, em Inglaterra — por lá, quis ver o sítio onde apanhamos o autocarro quando lá vamos.

Logo a seguir, quis voar até ao país do Quico, o filho da Ana e do Telmo, que vivem nos Emirados Árabes Unidos. Andámos a passear pela terra do amigo e ele ficou a saber como é ver o deserto de cima — e como há por lá cidades com ilhas em forma de árvore.

Das arábias, partimos para a Estátua da Liberdade — e partindo de Nova Iorque, acabámos, claro, nas Berlengas.

Quem andou a fotografar as Berlengas?

Neste caso, fui eu que quis tirar uma teima — será que as Berlengas também já foram visitadas pelo Google? E não é que, ao aterrar no arquipélago, percebi que aquelas ilhas também têm o Street View? Pensei para comigo: mas que raio, como é que enfiaram ali um carro da Google? Ou será que usaram um burro?

O Simão viu as primeiras imagens da ilha e gritou: «Já fui ali!» Eu disse-lhe que não, mas ele insistiu. Bem, talvez tenha sonhado. Ficámos ali a discutir a sua viagem imaginária às Berlengas, mexemos na imagem sem querer e foi assim que o nosso olhar virtual ficou virado para o chão — e descobri a sombra do tal “burro” que tirara as fotografias à ilha.

Sim, para lá dos carros da Google, em certos sítios mais exóticos, há gente que passeia com uma pesada traquitana às costas, só para o caso de alguém se lembrar de ir ver como é aquele sítio. Não sei bem para que isto serve: mas é um prazer percorrer o mundo sem sair da cama. Obrigado ao valente viajante de esfera às costas!

Agora diz-me o leitor (eu sei, eu oiço): ora, mas viajar é muito melhor! Estamos a substituir a experiência real por uma experiência virtual. O mundo está perdido!

E eu digo (desculpe lá o mau jeito): faça o favor de pedir desculpa ao mundo, que neste ponto não está perdido e não tem culpa nenhuma!

Pois bem: é claro que, se eu pudesse, estaria agora mesmo a visitar o meu irmão em Inglaterra ou a Ana em Abu Dhabi — ou percorreria novos países e novas maravilhas sem parar. Aliás, pudesse eu ter essa vida, estaria todo o santo dia a ler, a ver filmes, a viajar, tudo ao mesmo tempo, como um malabarista dos prazeres da vida.

Mas a vida não está para esses malabarismos — é um pouco mais rotineira e menos dada a espantos contínuos. A maior parte dos dias, temos de ir para a escola, para o trabalho ou ficamos na nossa própria cama a conversar, a ler ou até (ah, que desgraça!) a olhar para um ecrã onde o mundo roda como um mapa mágico — até porque esse mundo à mercê dos nossos dedos pode ser uma maneira de passar uns magníficos minutos em família, à noite, quando os museus estão fechados e não temos nenhuma viagem marcada para ir ao Japão.

É assim que, mesmo no meio dos dias iguais, vamos descobrindo algumas delícias inesperadas. Um dia é o mundo nos dedos, no outro será uma história de encantar, no dia seguinte uma simples conversa sobre um assunto intrigante ou banal.

No fim, pusemos o mundo na mesa de cabeceira, ele virou-se para o lado e adormeceu, não sem antes dizer a sua frase de todas as noites: «Mãe, pai — sonhos cor-de-rosa!». Não sei que praias, ilhas ou aventuras imaginou no sono dessa noite, mas parecia-me bem feliz na manhã seguinte.

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