Durante muitos anos, até 2014, carreguei comigo um segredo: tinha sido abusado sexualmente por um amigo de família quando tinha 10 anos de idade. Há mais de 20 anos que este segredo me consumia. Sofria em silêncio, sentia-me isolado, tinha pensamentos suicidas, estava em constante hipervigilância, tinha níveis de ansiedade disruptivos e vivia num estado interno de guerra com o mundo. Desde criança que vivia também com a crença errada de que tinha sido o único homem a passar por uma experiência traumática deste género e, claro, devido à manipulação do abusador, acreditava ainda que tinha sido eu o responsável pelo abuso de que tinha sido vítima.

No entanto, socialmente a imagem que as pessoas, minhas amigas, tinham de mim era a de alguém bem-disposto, amigo, disponível. A realidade negra, do profundo mal-estar, da asfixia e do trauma que me consumia por dentro, estava guardada só para mim. Foram mais de 20 anos neste registo.

Em 2014 não fazia ideia de que estava a três anos de distância de fundar a Quebrar o Silêncio, a primeira e única associação portuguesa de apoio para homens e rapazes vítimas de violência sexual. Em 2014 eu próprio não falava sequer sobre violência sexual, nem tampouco reconhecia, para mim mesmo, que tinha sido vítima, quanto mais pensar que em janeiro de 2017 estaria num programa televisivo a falar sobre este tema. Na verdade, foi apenas em dezembro de 2014 que procurei apoio pela primeira vez, e esse momento decisivo parece que aconteceu há uma vida.

A 19 de janeiro de 2017 a Quebrar o Silêncio foi apresentada publicamente, e nos primeiros 10 dias de atividade registámos 19 pedidos de apoio. Foi impressionante e a receção que tivemos foi bastante positiva. Em toda a minha vida jamais imaginei que a dor que sempre sentira seria a motivação e a força para criar uma estrutura de apoio para homens e rapazes que, tal como eu, haviam sido vítimas de violência sexual e sofriam em silêncio.

Três anos de trabalho com homens vítimas de violência sexual

Olhar para três anos de Quebrar o Silêncio é olhar para um universo de momentos marcantes. Os primeiros pedidos de apoio, as primeiras sessões de terapia, os primeiros grupos de ajuda mútua, as primeiras sessões de sensibilização. Acho que jamais irei esquecer o nome dos primeiros homens que procuraram apoio.

Ao longo destes três anos fomos chegando a mais homens e fomos crescendo, fomos investindo na nossa área de especialização e aprofundando o nossa formação técnica. Os próprios homens foram dando feedback e ajudaram-nos a melhorar alguns aspectos e a firmar a nossa resposta. Esta também tem sido uma caminhada feita em conjunto com estes homens.

Em três anos os pedidos de apoio foram aumentando. De janeiro de 2017 até dezembro de 2019, registámos um total 251 pedidos de apoio de homens vítimas de violência sexual. Foram 251 homens e rapazes sobreviventes que enviaram emails, ligaram, escreveram SMS e que viram na Quebrar o Silêncio um porto seguro e uma resposta ao trauma e à dor que sentiam.

Ao longo destes anos também fomos vendo cada vez mais homens a terminar o seu processo connosco. Homens que ultrapassaram o trauma provocado pelos abusos sexuais de que foram vítimas e que hoje vivem a sua vida sem que o trauma os afete.

Três anos de Quebrar o Silêncio têm sido, acima de tudo, uma experiência de imensa responsabilidade — responsabilidade para com os homens e rapazes que procuram o nosso apoio e um compromisso absoluto de não falhar na resposta especializada que disponibilizamos e que é necessária para ultrapassar o trauma e o impacto que a violência sexual gera nos sobreviventes.

Ouvir, acreditar e validar são os três eixos nos quais assentamos o nosso trabalho. Três anos parecem pouco tempo, mas também parecem uma década de trabalho. Para o futuro queremos continuar a prestar este apoio e chegar a mais homens. Mas também é preciso chegar a mais pessoas, desocultar esta forma de violência, quebrar tabus e desmistificar ideias erradas e preconceitos.

Reconhecer os homens enquanto vítimas de violência sexual

O futuro passa obrigatoriamente por um extensivo trabalho de sensibilização, informação e educação. Continuar a desocultar a realidade da violência sexual contra homens e rapazes faz parte dos nossos objetivos. Por cada homem ou rapaz que procura o nosso apoio sabemos que há muitos outros que continuam silenciados e a sofrer nesse silêncio.

Os 251 homens que chegaram até à Quebrar o Silêncio nestes três anos são apenas a ponta de um icebergue. Enquanto sociedade precisamos de trabalhar para criar um contexto receptivo à ideia de que os homens e rapazes também são afetados por esta forma de violência, para que, cada vez mais, haja sobreviventes que sentem a coragem e a força de procurar apoio e partilhar as suas histórias de abuso.


Se foi vítima de alguma forma de violência sexual por favor contacte a associação Quebrar o Silêncio através do número 910 846 589 ou do email apoio@quebrarosilencio.pt. A Quebrar o Silêncio presta apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Os serviços de apoio são confidenciais e gratuitos.