Tudo aconteceu num recanto perdido pelos subúrbios da Internet, num postal de Facebook que entretanto foi apagado — e tenho pena que o tenha sido, porque o diálogo era bem ilustrativo de alguns enganos típicos nestas coisas da língua e do que é ou não correcto. Assim, tenho de me socorrer da minha memória.
Então e qual era a lógica de quem achava que aquele acento estava incorrecto? Bem, a lógica era: como não dizemos «a França», não podemos dizer «Volta à França».
Perguntarão agora os meus caros leitores: então, mas não dizemos «a França»? Segundo alguns dos comentadores furiosos, não. Nomes de cidades e países? Tudo sem artigo! Afinal, não dizemos «o Portugal», pois não? Nem «a Lisboa», pois não? Houve até quem dissesse: antigamente gozávamos com os emigrantes por dizerem «Vim da França!». Agora já não podemos gozar?
Pois, não podemos, porque emigrante que diga isso está a dizer muito bem.
Mas por que razão trago para aqui uma pequeníssima polémica escondida no Facebook a quem ninguém vai ligar (e até já foi apagada)?
Porque é mais interessante do que parece.
Primeiro, o caso é um exemplo de como, às vezes, baseamos as nossas certezas num ou dois casos, sem nunca procurar os casos contrários. E é tão fácil encontrar casos contrários nesta questão — digam comigo: a Bélgica! O Brasil! A Rússia! O Canadá!
Ora, essas péssimas certezas dão logo para a gritaria: para o pequeno grupo ali ajuntado à esquina virtual, quem contrariasse a sua certeza era porque não sabia português — ou era um desses linguistas (malandros!) que aceitam tudo. Até aceitam «Volta à França»! (E até aceitam «ajuntado»!)
Em segundo lugar, este erro falso é interessante porque é uma desculpa para reparar neste recanto da nossa língua: o uso dos artigos antes dos nomes dos países (se acha isto aborrecido, está na crónica errada).
Limpemos a mesa: hoje, olhamos só para os países. Esqueçamos cidades e regiões. A questão é, portanto: devemos usar artigo antes do nome dos países? Por exemplo, na frase «O meu país preferido é _ [nome do país]», o espaço em branco leva artigo ou não?
Ora, a maioria dos países, em português, leva artigo. Reparemos: «a Alemanha», «a Rússia», «os Estados Unidos», «o Brasil», «a Guatemala», «a China», «a Austrália», «o Zimbabué», «a Índia», «a Suécia», «a África do Sul», «o México», «o Canadá», «a Hungria», «o Equador», «o Japão», «o Irão»… Podia continuar aqui a noite toda.
Dizem-me logo os leitores mais atentos: há excepções, não é assim? Claro. Começamos logo cá por casa: «Portugal». Não usamos artigo… «O meu país preferido é Portugal.» (Curiosamente, o artigo aparece em construções um pouco arrevesadas, como «o Portugal da minha infância»; mas deixemos essas nostalgias para outro dia.)
Que outros países não levam artigo? Os exemplos são escassos, mas temos: «Moçambique», «Angola», «Cabo Verde», «São Tomé e Príncipe», «Timor»…
Reparou naquilo que une todos estes países? De facto, dos países de língua oficial portuguesa, apenas o Brasil e a Guiné-Bissau levam artigo. Enfim, a amostra é pequena, acalmemos os cavalos das extrapolações. Adiante. Para lá dos países que usam o português como língua oficial, há mais países sem artigo: Marrocos, por exemplo. Ou Omã, salvo erro (não é nome que use muito). Mais? Cuba — e uns quantos mais (muitos deles, vá-se lá saber porquê, nas Caraíbas). Ah, e não nos esqueçamos de Andorra!
Ou seja, temos uma tendência geral para usar o artigo, mas as excepções são muitas e incluem alguns dos nomes de países que mais usamos.
Por fim, temos os casos curiosos de Espanha, França, Inglaterra, Itália… Nestes casos, há variação. É possível ouvir «vivo em Espanha», mas também «a Espanha é um país enorme». Eu diria, sem pestanejar, «vim da França ontem», pondo lá o artigo — mas também podia dizer «há muitos portugueses em França», esquecendo o artigo. Em certas construções, o uso do artigo dá um certo tom mais informal à frase, mas a análise dessa informalidade dependerá muito da sensibilidade de cada um. Seja como for, não estamos perante uma incorrecção como seria, por exemplo, «Volta ao Portugal».
No caso de «Volta à França», o nome é mais usado assim, com acento, embora também encontre, nalguns jornais, o uso de «Volta a França». Curiosamente, pronunciamos sempre da mesma maneira, pois mesmo sem artigo os dois «aa» ali seguidos transformam-se numa vogal aberta. Coisas da língua falada.
Este caso é também um exemplo da tendência para confundir «a língua tal como eu (acho que) a uso» com «a língua como deve ser usada pelos outros». Esta atitude não é (como se arroga) uma defesa da correcção, mas antes uma dificuldade em lidar com a variação. Os casos em que não há variação não levantam problemas — ninguém pestanejou perante os nomes em que usamos sempre ou não usamos nunca o artigo («a Alemanha»; «Portugal», etc.). O problema não é o artigo ou a falta dele: é a variação! Quando há variação, chega sempre alguém com vontade de arrumar a língua numa lógica simplista, uma lógica que não repara nas subtilezas do uso real dos falantes e não gosta de ter várias opções. Quem tem esta dificuldades costuma argumentar: mas é preciso haver uma norma! Pois é, mas a norma tem de admitir a tal variação, sob pena de ser cada vez mais artificial, limitada e distante do uso real. E, neste caso, a norma dá-nos estas duas opções. É a vida!
Esta dificuldade em lidar com a variação (e note-se que a variação existe em todas as línguas e em todas as épocas) também levou, durante muito tempo, a que algumas pessoas criticassem sotaques diferentes — felizmente, hoje, já poucos atacam algo tão simples como a variação na leitura do número «dezoito».
Já o comentário «Se eu gozava com quem usava isto, é porque está errado!» também mostra outra coisa interessante sobre as nossas atitudes perante a língua: as palavras e a sintaxe estão, muitas vezes, associadas a determinados grupos e a nossa atitude perante elas tem muito que ver com essa associação. No fundo, cada palavra ou construção tem o prestígio que tem o grupo com o qual a associamos. É assim em todas as línguas — o problema é que, na cabeça de muitos, a falta de prestígio está associada a um defeito intrínseco, como se dizer o nome sem artigo fosse inerentemente melhor do que a outra opção.
Sim, certas formas ganham estatuto de norma, mas é esse estatuto que lhes dá o ar de correcção e não a sua suposta perfeição ou lógica — ou beleza. (Um parêntesis em relação à beleza: a norma parece-nos mais bela porque é usada, em geral, por grandes artistas da língua. No entanto, em muitas línguas, há poetas e escritores que fazem maravilhas bem longe da norma. É possível fazer coisas bonitas com todo o tipo de material, com todo o tipo de palavras — as que saem da boca do rei e as que saem da boca do camponês. Então quem souber misturá-las com talento…)
Na verdade, já me estou a desviar muito: afinal, dizer «a França» não é um desvio à norma… É apenas um caso em que a norma admite duas possibilidades: usar ou não usar o artigo. Acontece em todas as línguas.
A língua não é simples: está cheia de subtilezas, de regras implícitas que cumprimos, mas não conhecemos, de cambiantes de sentido e de sabor porque abrimos ou fechamos uma vogal. Dizer isto — e não ir na cantiga de quem inventa erros sem justificação, disparando primeiro e perguntando depois — não quer dizer (bem pelo contrário) que vale tudo. Quem disser «cheguei ao Portugal» precisa de aprender a falar melhor… Já quem disser «Venho da França!» precisa é de ser recebido de braços abertos.
_____________________
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
Comentários