Pequenos trechos e “revelações” do conteúdo do livre "Fire and Fury" do jornalista Michael Wolff, convenientemente vazados uma semana antes no jornal britânico Guardian e logo a seguir em vários jornais norte-americanos, mostravam que se tratava de um relato convincente, jornalístico, do que se realmente se passou na Casa Branca nos primeiros dez meses da presidência de Donald Trump. Trump reagiu imediatamente – ainda antes do livro chegar às mãos da comunicação social – com duas atitudes contraditórias e sem nexo, como é seu costume: por um lado tuitou que era tudo mentira, por outro mandou os seus advogados suster a publicação (se era falso, porquê impedir?).

E, também na forma habitual das atitudes do Presidente, o resultado das suas acções só piorou os seus interesses, despertando uma curiosidade acima das expectativas. Uma cópia pirata em pdf, ainda com erros de revisão, começou a circular pela internet no dia anterior ao lançamento.

O relato de Wolff é, sem dúvida, saboroso para os inimigos de Trump e altamente prejudicial para os envolvidos. No entanto, nos dias subsequentes à saída do livro, os mais conceituados títulos da comunicação social levantaram muitas questões quanto à sua veracidade e, sobretudo, idoneidade.

Bret Stephens, num editorial do New York Times definiu o texto de Wolff como a própria definição de intriga: “ouvir algo de que gostamos sobre uma pessoa de detestamos”. E conclui: “O resultado líquido de "Fire and Fury" é conseguir baixar de tal maneira as expectativas do público sobre Trump que se torna muito mais fácil para o Presidente excedê-las”.

Michelle Cottle, na revista “The Atlantic”, diz que “Wolff, tal como Trump, é um tipo particular de criatura de Nova Iorque, obcecado apenas com a elite intelectual de Manhattan. Nascido em Queens, Trump carrega sobre os ombros o peso de ser um suburbano. Wolff, nascido e criado em Jersey (outro subúrbio), abriu caminho à custa de golpes e espertezas para chegar ao Upper East Side (o bairro mais fino de Manhattan). Muitos dos desejos, ansiedades e obsessões que empurram este Presidente também empurraram Wolff – desde o desprezo pelas regras à tendência par chocar, a obsessão pelo soundbite e a ânsia de ser aceite pela elite de que fazem troça. Em muitas áreas são os dois o par perfeito de sujeito da crónica e cronista.”

Acrescenta Cottle: “Tanto Trump como Wolff tornaram-se famosos por serem rebeldes nos campos que escolheram. Ambos têm fama de se preocupar pouco com os factos e muito com a sua visão das coisas. Assim como Trump não tem tempo para aborrecidas convenções e delicadezas – ou pela normas democráticas que os presidentes costumam respeitar – Wolff não se sente limitado pelas normas mais aborrecidas e restritivas do jornalismo, tais como preocupar-se demasiado com quem fala para ser publicado (“on record”) ou quem fala sob anonimato (em “off”). Mas talvez o mais importante é que Wolff sabe que na América de hoje o nome do jogo é ruído (buzz). Por isso é que se pode sentir razoavelmente zen, mesmo agradecido, no meio da actual tempestade. Tudo o que se possa dizer sobre ele, bom ou mau, traduz-se em mais vendas de livros. O que poderá ser mais trumpista do que isto?”

A questão, que salta logo à vista dos jornalistas, é o tipo de narrativa de Wolff. Reproduz diálogos ipsis-verbis, entre aspas, sem dizer de quem os ouviu (uma vez que não estava presente), raramente dá o nome das fontes – com excepção, praticamente, de Steve Bannon – e quando dá, é de uma forma indirecta, através de outras fontes não identificadas. Tudo o que ele diz parece fazer sentido, mas muito do que diz só será verdade porque faz sentido, não porque esteja jornalisticamente confirmado.

É precisamente isso que escreve Masha Gessen na The New Yorker: “O pior é que as reportagens de Wolff não são reportagens. As revelações mais bombásticas  referem-se a comentários que Wolff atribui a Steve Bannon, que terá afirmado que a reunião na Trump Tower em Junho de 2016, entre Trump Jr., Jahred Kushner e um advogado russo foi uma “traição” e que devia ter sido comunicada ao FBI; e Bannon terá dito que o russo terá sido levado à presença de Donald Trump. De todas estas afirmações, uma é evidente – que o encontro devia ter sido comunicado ao FBI – e as outras são falsas: não é “traição” encontrar-se com representantes de um país que não está em guerra com os Estados Unidos, e não há qualquer prova de que o russo se tenha encontrado com o futuro Presidente. Wolff não se preocupa a confirmar nada disto.”

“Wolf parece ocupar o espaço entre o que escrevem os repórteres que cobrem a Casa Branca, sempre preocupados com uma certa contenção sobre o dizem do Governo, e os humoristas dos programas de televisão, que dão uma sensação de alívio em relação a essa contenção porque não estão obrigados à verdade jornalística. Esse espaço, onde não existe nem contenção nem precisão, não deveria existir. O facto de “Fire and Fury” ocupar tanto espaço público degrada ainda mais o nosso sentido do que é real, ao mesmo tempo que cria a ilusão de sê-lo.”

Portanto, é neste sentido que se pode afirmar que Wolff e Trump se merecem: o déspota e o inevitável bufão da corte. Postas estas ressalvas, a leitura completa do livro de Wolff – 22 capítulos e 269 páginas – é simultaneamente chocante e aliciante. Pode considerar-se que não é jornalismo, no sentido deontológico do termo; é mais um romance histórico, com a particularidade da História ser contemporânea e as personagens estarem vivas.

Há muita literatura excelente, em qualidade e em veracidade, neste ramo da escrita. Podem citar-se vários exemplos, mas vem a propósito a trilogia de Gore Vidal – “Burr”, “Washington DC” e “1876” – que narra episódios dos Estados Unidos no século XIX. Perguntaram a Vidal como é que ele montou, por exemplo, diálogos entre Lincoln e o seu secretário, que por acaso se chamava Kennedy. Vidal tinha notas trocadas entre os dois sobre determinados assuntos, bastando-lhe portanto imaginar essas trocas escritas como conversas. Não terá uma precisão jornalística – eles podem não ter dito as coisas exactamente assim – mas por isso os livros de Vidal são romances e não reportagens. Wolff utiliza uma técnica parecida mas, como põe frases na boca de pessoas vivas, exigir-se-ia uma confirmação de segunda fonte.

Na maioria dos casos, trata-se de afirmações verdadeiramente contundentes, como por exemplo: “Trump, é instintivo, uma força da natureza. Não sabe de nada em profundidade, ou mesmo superficialmente, nem se interessa.(...). Não tem quaisquer escrúpulos.” Quem disse isto? Não se sabe. Ou então relata em pormenor uma chamada telefónica de Trump, a queixar-se a alguém que obviamente terá contado tudo a Wolff, mas que ele apenas diz ser um “conhecido da comunicação social de Nova Iorque”. Um telefonema de 26 minutos relatado por outra pessoa, até que ponto pode ser fiel?

Por outro lado, Wolf faz muitas considerações sobre o carácter e as motivações das personagens que não se percebe se são dele ou de terceiros. Por exemplo, que durante o período da candidatura ninguém da equipa acreditava que Trump ganhasse, nem o próprio Trump. Claro que também há muitos nomes e factos verificáveis pelo que foi publicado na altura.

É uma leitura especulativa dos acontecimentos? É. Mas, ao mesmo tempo, é terrivelmente conforme com a realidade que podemos entrever nos tweets do Presidente, nas declarações embaraçadas dos seus mais próximos e na iniludível realidade das notícias. Há até discursos indescritíveis de Trump que são públicos e encaixam na narrativa à porta fechada.

E é também uma especulação sobre conversas, ditos e situações que não podem ser verificadas? Também é. Mas está completamente em sintonia com o que chega ao público em geral. Ao narrar cronologicamente os acontecimentos, recordando situações que o ruído constante do dia a dia faz rapidamente esquecer, mostra sem sombra de dúvidas uma realidade terrível: os Estados Unidos, tal como o Império Romano, chegaram àquela fase em que é possível ter o maior poder do mundo nas mãos de uma pessoa que, pelo senso comum, não devia ter poder nenhum.

E, como qualquer situação histórica, tem o seu cronista apropriado, que mistura senso comum com contra-senso, verdades com meias-verdades e possíveis mentiras que podem ser falsas.

Resumindo: uma leitura indispensável para compreender a quantas andamos.