A Guerra Fria durou entre 1945 e 1989, o ano em que acabou a União Soviética. Mas, apesar da dificuldades da Rússia em se adaptar a um novo regime, que acabou por ser tão autocrático como o anterior, sempre se considerou que era o potencial arqui-inimigo do chamado “Ocidente” (o conjunto de democracias, não só ocidentais, que praticam os direitos fundamentais do cidadão, com mais ou menos sucesso). Tanto que a NATO, tornada irrelevante, nunca deixou de existir e até se expandiu para alguns ex-satélites soviéticos.
O poderio militar da Federação Russa, nuclear e convencional, continuava a ser visto como uma ameaça latente, e a subida ao poder de um novo ditador (depois de uma curta e mal-fadada tentativa democrática) confirmava que as ambições do hipotético Império Euro-asiático permaneciam em cima da mesa. Entretanto, a China crescia à vista de toda a gente, não só como potência económica mas também como um estado expansionista, criando uma zona de influência internacional. Há alguns anos que os analistas consideravam este crescimento inevitável, divergindo apenas quando ao tempo - quantos anos seriam necessários para a República Popular igualar os Estados Unidos como país dominante.
Os norte-americanos, embora mantendo os olhos atentos ao desenvolvimento chinês, mudaram o mix do seu arsenal bélico, mais focado no terrorismo internacional, uma mistura de grupos radicais e países de mau cariz (como o Irão). Os europeus acomodaram-se na sua posição de resort de luxo, sem auto-defesa, protegidos pelo guarda-chuva do outro lado do Atlântico. O “perigo nuclear”, que tanto assustou o mundo durante a Guerra Fria, passou paulatinamente para um segundo plano. Não se combate o Al-Shababb ou a Al-Qaeda com bombas atómicas.
Então, de repente, tudo mudou.
Em 24 de Fevereiro de 2022 a Federação Russa invadiu a Ucrânia, o início de um plano público de Vladimir Putin para reconstituir por etapas o território da antiga União Soviética. Atónito, o mundo viu, ao vivo e a cores, que o formidável poder atribuído aos russos era um tigre de papel. Os melhores regimentos foram dizimados, centenas de tanques destruídos, objectivos abandonados. As forças de um pequeno país, menores e mal equipadas, desfizeram a invasão e mostraram a inépcia dos corpos de elite, a confusão dos comandos, a desorganização dos abastecimentos. Sem uma vitória notável, os soldados russos torturaram e massacraram civis, destruiram cidades, comportaram-se como um bando de rufias e não como o exército profissional de um grande país.
O que se seguiu toda a gente sabe, e o que se seguirá não é previsível, mas o mito está desfeito. A Federação Russa não é um grande poder militar. Entalados no terreno, com poucos ganhos locais (18% do território, em Setembro de 2022, segundo o Instituto para o Estudo da Guerra norte-americano), os russos destroem estruturas civis a eito e estão a recorrer a mercenários chechenos, e recrutados nas prisões (grupo Wagner) e a drones comprados ao Irão, para manter as áreas conquistadas, que já eram russófonas antes do conflito começar. E mantém a ameaça de usar armas nucleares, que sabem ser inútil, pois devastariam o país mas não o ocupariam.
A despromoção da Federação Russa de grande poder militar para uma força pouco efectiva tem repercussões planetárias no que diz respeito ao equilíbrio geo-estratégico. Tirando os aspectos de movimentação de matérias primas e dificuldades energéticas globais, concentremo-nos no mais espectacular: a ascensão imediata da China a segunda potência mundial, sem precisar de fazer nada para isso. Passa-se precisamente o contrário: quanto menos fizer, mais ganha - mais rapidamente passa a ser um dos protagonistas da nova bipolarização.
Esta situação é particularmente favorável às ambições e ao modus operandi de Pequim. Basta-lhe manter uma simbólica imparcialidade no conflito actual para sair vencedora no pós-guerra.
Se a equação é simples, os dados são complexos — precisamente uma área em que os chineses sempre se mostraram muito competentes. Os seus objectivos são claros, conforme está resumido no “The Economist”: “assegurar-se que a Rússia se torna um estado subordinado (a Pequim), mas não tão fraco que o regime de Putin imploda; melhorar as suas credenciais de negociador para a paz aos olhos do mundo emergente; e, levando em conta Taiwan, minar a aparente legitimidade das sanções e do apoio militar ocidental como uma ferramenta de política externa.”
Xi Jinping sabe isto melhor do que ninguém, e assim propôs um “plano de paz” que legitima a agressão russa mas que a Ucrânia não pode aceitar. Fala do “respeito pela soberania de todas as nações” mas esquece-se de mencionar que os russos ocupam uma parte dum país soberano.
Defende o fim das sanções ocidentais sem exigir que a Rússia abandone o território ocupado.
A visita de Xi Jinping a Moscovo está dentro desta estratégia. Sabe que Putin inevitavelmente pedirá apoio militar e tecnológico, mas está ciente de que isso levaria a China a uma confrontação com a NATO; o importante é que Putin peça, o que o coloca numa situação subalterna de solicitador.
Não lhe custa nada concordar com o russo de que a guerra se deve à vontade de expansão da NATO, mas não admite que conhece as violações de direitos humanos cometidas pelos militares e para-militares invasores; limitar-se-á, talvez, a fornecer uma ajuda não militar. Continua a evitar furar as sanções ocidentais, mas nunca declarou que as apoia. Ganha comprando petróleo e gás a preços de saldo e vendendo produtos diversos, incluindo electrónicos. Em 2022 as exportações de petróleo russo para a China cresceram 44% e as de gás 100%. As importações de produtos chineses não letais, (como microchips) aumentaram 12,8%
É muito provável que a China não acreditasse na loucura que Putin cometeu em Fevereiro. Pouco antes da invasão Putin foi a Pequim para a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno e nessa altura os dois países declaram uma “parceria sem limites” - nesta visita de Xi a Moscovo a fraterna promessa não foi repetida, pelo menos em público. Os oficiais chineses colocados em Moscovo em 2022 foram todos despromovidos desde então, sinal de “castigo” por não terem levado a sério a ameaça. Mas isso agora não interessa; a situação mudou e Xi adaptou-se a ela, e muito bem.
Xi Jinping já o disse muitas vezes: a ordem mundial dirigida pelos Estados Unidos está a sofrer um declínio inexorável, devido a líricas preocupações com direitos humanos e às regras morais em degradação. O que ele acha bem é um sistema de transacções entre os grandes poderes, sem considerações humanísticas. Na época mais cínica em que vivemos, esta visão parece ter cada vez mais apoiantes. A Rússia e as ambições de Putin? Isso são brincadeiras, peripécias desagradáveis que em nada altera a “big picture”. Esta viagem a Moscovo, feita unicamente para se mostrar um amante da paz (nos seus termos) e incomodar o Ocidente, faz parte do plano a longo prazo.
O mais excruciante para nós, europeus, que já quisemos, pudemos e mandamos, é que agora somos uns simples espectadores. E nem sequer estamos muito ralados com isso.
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