Não há uma continuidade coerente nas relações entre países. Ora são amigos, ora inimigos, conforme os seus interesses. Um histórico que conhecemos muito bem é o caso de Espanha e Portugal. Outra situação evidente, hoje convenientemente esquecida, é que as nações europeias dominaram o mundo (quase totalmente, entre os séculos XVIII e XIX) não num projecto comum, mas sim numa competição entre elas. Só a partir da catástrofe da 2ª Guerra Mundial (mais uma vez, os europeus a lutar uns contra os outros) é que vingou a ideia dum continente unificado pelos mesmos ideais de paz e prosperidade. Mas, mesmo assim, as diferenças entre os interesses dos membros da UE são evidentes, e só um delicado consenso os mantém unidos. E por vezes quebra-se, como foi o caso do Brexit, ou da hostilidade aos regimes da Hungria e da Polónia.

Para exemplificar alguns períodos particularmente hostis dessa competição, basta lembrar as guerras de séculos entres os Habsburgos e os Bourbons, as hostilidades entre “papistas” e protestantes, a 1ª Guerra Mundial e as campanhas de Napoleão e de Hitler contra o resto do continente. É interessante que o nascimento da Alemanha unificada tenha sido proclamado por Bismark em Versailles, depois duma derrota estrondosa de Napoleão III.

Tudo isto para chegarmos ao caso particular da Alemanha. Ainda não chegara à unificação de 1871 (era a Prússia e os seus estados vassalos) e já tinha os olhos predadores virados para o Leste. Os cavaleiros teutónicos invadiram sistematicamente a Polónia e a Rússia. Já unificada, Guilherme II invadiu a Rússia czarista e e depois Hitler avançou brutalmente pelos países balcânicos e pela União Soviética (em que a Ucrânia tinha sido integrada à força, em 1922).

Floresceu um pacifismo em que “nunca mais”, não quer dizer “nunca mais fazer a guerra”, mas sim “nunca mais aceitar uma tirania”.

A derrota avassaladora de 1945 marca, ao nível individual e colectivo, uma mudança radical nos alemães. Por um lado passaram um período de fome, destruição, ocupação e opróbio internacional, por outro crescia uma nova geração fortemente anti-militarista, que teve de confrontar o seu passado recente, fazer contrição e habituar-se a viver com ele. Até têm uma palavra para definir a sua atitude: Vergangenheitsbewältigung - literalmente “lidar com o passado”, não um passado qualquer, mas o do nazismo. Quer dizer, aceitar que aconteceu, reconhecer a culpa e não ter remorsos. Floresceu um pacifismo em que “nunca mais”, não quer dizer “nunca mais fazer a guerra”, mas sim “nunca mais aceitar uma tirania”.

Enquanto o continente nadava no luxo duma paz duradoura e o país se tornava o seu motor industrial, esta atitude trouxe à Alemanha uma nova influência europeia e simpatia internacional - “coitados, deixaram-se levar pelo canto da sereia, mas agora desenganaram-se e têm um papel muito construtivo no progresso cultural e material”.

Isto, até que Putin, com o sonho demente do império euroasiático, invade a Ucrânia, colocando a UE perante uma ameaça incontornável. Ninguém tem dúvidas, até porque ele próprio o disse, que o objectivo é o domínio moscovita “de Vladivostok a Lisboa”. Para os alemães (e para os europeus) é um acontecimento inesperado que o anódino chanceler Olaf Scholz chamou de Zeitenwende, “ponto de inflexão”, a 24 de Fevereiro de 2022, apenas três dias depois do início da “operação militar especial” russa («spetsial'naya voyennaya operatsiya»).

Mas a política alemã é complicada, com governos de coligação onde se manifestam diferentes sensibilidades. Depois de historicamente ter sempre agido como agressor em relação à Ucrânia, a Alemanha vê-se agora na situação de defensora - tanto por razões morais como pelo seu próprio interesse. Mas precisa a todo o custo de evitar a etiqueta de militarista. E o partido de Sholz, o SPD (sociais-democratas), está particularmente dividido quanto ao país se envolver em conflitos militares, sejam quais forem.

O resultado desta situação tem sido contraditório; por um lado, a Alemanha tornou-se o maior contribuinte europeu de ajuda militar, com dois mil milhões de euros até Abril, por outro tem-se recusado a enviar o melhor tanque da actualidade, o Leopard II, e mesmo a permitir que os países europeus enviem os Leopard dos seus arsenais. (A situação mudou recentemente, num esquema que relataremos a seguir.)

Em Outubro do ano passado, o clima entre os dois países era tão tenso que os ucranianos cancelaram uma visita a Kiev do presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier. Os alemães têm ajudado muito, mas parecem sempre fazê-lo contra vontade.

Finalmente, no domingo passado, Zelenski esteve na cidade alemã de Aachen para receber um galardão europeu, o Prémio Carlos Magno, enquanto o ministro da Defesa, Boris Pistorius, anunciou um novo pacote de ajuda ainda maior: três mil milhões de euros.

E agora, entre parênteses, a história dos tanques.

Em geral, a NATO tem uma atitude um tanto disléxica em relação à guerra na Ucrânia. Por um lado, tem fornecido a Kiev enormes quantidades de armamento, sem os quais os ucranianos não poderiam aguentar-se, por mais voluntariosos que fossem; por outro está sempre com receio de chegar a um patamar em que os russos proclamentem oficialmente que estão em guerra com a Aliança, levando a uma escalada mundial, quiçá nuclear. (Os russos não o farão, porque não querem reconhecer entre portas que a “operação especial” é uma guerra, e porque sabem que uma guerra mundial seria catastrófica para eles.)

Dentro dessa situação está o fornecimento de tanques, essenciais para a ofensiva ucraniana. Os norte-americanos não queriam enviar os seus Abrams, desculpando-se que, sendo movidos por turbina, têm uma manutenção difícil; e os alemães não queriam ser os únicos a enviar tanques. Finalmente o nó desfez-se, talvez porque os ingleses decidiram fornecer os seus Challenger 2 e tanto norte-americanos como alemães estão a entregar as suas máquinas.

Posto isto, entre hesitações e hipocrisias de ambas as partes (NATO e Federação Russa) a Ucrânia está prestes a passar da defensiva para a ofensiva, enquanto o seu povo passa por provações inimagináveis. Mas, se os europeus abatidos em 1939-45 ressuscitassem, ficariam perplexos ao ver a situação actual, com a Alemanha a ajudar da Ucrânia contra a Rússia.

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