O ano é 2020 e conta a burlesca história do primeiro-ministro de um país peninsular totalmente fictício que, cinco fictícios anos antes, perde umas fictícias eleições democráticas mas consegue, ainda assim, guindar-se ao poder executivo nos ombros de dois partidos fictícios que se distinguem apenas pela divergência das vias que propõem para sabotar e, em última instância, demolir a democracia burguesa em defesa da qual alegaram então o dever de vencer as eleições que perderam.
Esses dois partidos fictícios – chamemos-lhes, ficcionando os acrónimos, «PCP» e «BE» e cujo içamento ao poder simbolizou a queda de um muro erguido no instante da expulsão da placenta do regime recém-nascido –, mantendo até hoje um insanável desacordo histórico acerca da verdadeira propriedade dos meios de produção económica e, sobretudo, concentracionária (se a propriedade trotskista que inaugurou o Gulag com um grupo de prisioneiros de guerra checos, se a propriedade estalinista que, indiferente a toda e qualquer distinção reaccionária de classes e nacionalidades, expandiu generosamente o seu âmbito a toda a humanidade), são ainda considerados, pela esmagadora maioria da minoria mediática e intelectual, intrépidos defensores do regime democrático que pretendem incansavelmente abolir.
E ainda que os estalinistas vitoriosos do PCP e os estalinistas falhados do BE divirjam, não na defesa da admissibilidade e, mesmo, da necessidade histórica da «Picadora de carne», mas apenas na selecção da carne a ser picada, aquilo que realmente distingue uma democracia liberal madura, alega o tal primeiro-ministro no tal momento da tal queda do tal muro, é justamente a tolerância da intolerância que só não tolera a intolerância tolerada com que os intolerantes intoleram os tolerantes que os toleram, enredando-se assim, como um Laocoonte da língua de Camões, num novelo exegético de tal maneira insondável que a sua descodificação terá de aguardar pela segunda vinda de Jorge Miranda porque a primeira, ainda em curso, claramente não será suficiente.
Quando, porém, num arquipélago não muito distante, o partido do primeiro-ministro que venceu as eleições que perdeu perde as eleições que venceu de acordo com a mesma fórmula que cinco anos antes instruíra o país como uma histórica lição de democracia parlamentar que tolera quem a intolera (vimos acima o nenhures laocoôntico onde isto vai dar), todo o país se vê agora forçado a negar o que antes afirmava e a reprovar como nova rendição de Pétain o que outrora advogava como velho ensinamento de Voltaire.
De acordo com a nova doutrina democrática que revoga a velha doutrina democrática, e cuja revogação constitui a prova mesma da sua própria vanguarda lógica, uma democracia que acolhe no seu seio partidos de inspiração não-democrática não pode acolher no seu seio partidos de inspiração não-democrática sob pena de colocar em risco a própria natureza democrática do regime cujo seio acolhe inspirações partidárias contrárias à sua democrática natureza. Simplificando e sloganizando: Partidos de inspiração não-democrática sim! Partidos de inspiração não-democrática é que não!
Como testemunho do perigo real inscrito no acima escrito, surge um abaixo-assinado em defesa da verdadeira democracia (por alguma razão que a teoria política ainda não foi capaz de esclarecer, tarda em surgir um abaixo-assinado em defesa da falsa democracia) que, tudo somado, tem mais subscritores do que eleitores que os subscrevem, prova inegável da esmagadora representatividade popular que a verdadeira democracia possui nos «lugares de fala» onde sempre vence por falatório, como colunas de jornal, e onde não raro é vencida em silêncio, como urnas de voto: D’où parles-tu, camarade?
O propósito? Mostrar que a verdadeira democracia não tolera propostas anti-democráticas de confinamento sanitário de nenhum dos seus representados (individualmente ou em grupo). E, para combater esse vexame, os verdadeiros democratas propõem o confinamento sanitário de um dos seus representantes (o indivíduo e o seu grupo). A estigmatização como forma de combate à estigmatização: a tribalização como forma de combate à tribalização: a ciganização como forma de combate à ciganofobia: o anti-cigano anti-democrata foi transformado no cigano da democracia.
Os habitantes mais neutrais – digamos, os suíços deste país fictício –, no entanto, conseguiram chegar a uma criativa solução de compromisso por via da construção de uma equivalência moral entre os partidos de inspiração não-democrática que têm no seu acervo doutrinário intelectuais profundamente humanistas como Lenine, Trotsky e Estaline ou as noções de «ditadura do proletariado» e «colectivização dos meios de produção» – e um partido de inspiração igualmente não-democrática que tem no seu património teórico pensadores ostensivamente iliberais como Montesquieu, Burke e Mises ou as noções de «individualismo metodológico» e «defesa da ordem espontânea». Com os primeiros, é tolerável derrubar muros históricos. Com os segundos, é imperativo erguer cercas sanitárias. Todo o muro encontra o seu Trump.
O país que serve de palco a tudo isto é obviamente fictício e possui uma existência meramente paródica. Há nele, no entanto, uma fabula docet: a de que um país com tendência a moderar fanáticos acaba sempre, mesmo que não se dê conta disso, a fanatizar moderados. Se um tal país fictício, voltado para o tal arquipélago fictício, ainda vai a tempo de voltar a moderar os moderados ou se já é tarde para um retorno à moderação é uma incógnita. Tudo dependerá da correcta avaliação que os moderados fizerem do seu tempo. Que horas são nos Açores? Zero horas. Menos uma hora no Continente.
*Miguel Granja escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
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