- Adeus - disse a raposa. - Vou-te contar o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos…
- O essencial é invisível para os olhos – repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Foi o tempo que tu perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Os homens já se esqueceram desta verdade - disse a raposa. - Mas tu não te deves esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que está preso a ti. Tu és responsável pela tua rosa…
Este é provavelmente um dos excertos mais conhecidos do livro de Antoine Saint-Exupéry, “O Principezinho”. Usado em incontáveis situações e agora também num artigo onde parece subitamente apropriado para se falar de algo improvável: nanotecnologia. Não se trata de ver com o coração, mas com a inteligência. Ou, de outra forma, de ver o quase invisível através do conhecimento científico e de o usar para melhorar a vida em várias áreas.
É de nanotecnologia que se fala no INL, um laboratório ibérico dedicado à investigação em nanotecnologia com sede em Braga que comemora a primeira década de vida. E nada melhor que uma visita ao evento que assinalou os 10 anos do INL para perceber o que por lá se faz. Aconteceu esta semana, entre 16 e 17 de outubro, no Altice Fórum Braga - e estivemos lá. Das várias iniciativas a acontecerem em simultâneo, acompanhámos em concreto o concurso Fuel, uma seleção de projetos de empreendedorismo em nanotecnologia que subiu a palco para fazer o tradicional “pitch”. Fomos conhecer alguns projetos, e depois, fora de palco, ao ouvi-los ficamos com o espanto feliz por existir um conjunto de pessoas que estão ativamente a explorar caminhos para que possamos viver melhor. Mesmo que precisemos que expliquem, bem trocado por miúdos, como tudo isso se passa.
Comecemos pela Ruby Nanomed. Sara Abalde mostra-nos um dispositivo transparente que tem lá dentro um circuito que quase parece uma pauta de música. É um objeto pequenino, talvez com menos de 10 centímetros de comprimento. E é um objeto que pode ajudar milhares de pessoas a serem mais rapidamente diagnosticadas em situações de cancro, seja para que o alívio chegue mais rápido, seja para que a solução de tratamento também seja mais depressa implementada. Basicamente, esse dispositivo recolhe 7,5 ml de sangue, a dose comum numa análise sanguínea, e em 45 minutos deteta se existem ou não células tumorais. Essa deteção permite controlar uma das vertentes mais complexas de um tumor que são as metásteses, permitindo à equipa médica implementar com rapidez os tratamentos.
“Somos uma equipa de cientistas do INL com formação em nanotecnologia e microfluídica que analisa como fluídos corporais, como o sangue, passam em canais muito pequeninos”, conta Sara Abalde. Uma equipa que sabe de física, de química, de biologia, de nanotecnologia e agora também de gestão e negócio. Começaram por trabalhar em biópsia líquida e utilizando a nanotecnologia chegaram a um método de diagnóstico para metáteses mais eficaz do que os que existem, sejam através de imagens (TAC e ressonância magnética), seja utilizando tecnologia semelhante à da Ruby Nanomed mas menos ampla.
Sara explica: “a outra tecnologia que existe usa nanopartículas magnéticas que avaliam o sangue, mas um dos problemas é que só captura um tipo de células tumorais que são parecidas com as células da pele. Mas há outro tipo, que são mais parecidas com células originais (stem cells), e o nosso dispositivo captura todo o tipo de células”. Segundo a cientista, a eficácia da tecnologia desenvolvida pela Ruby Nanomed é oito vezes maior. E além disso, há o tema do acesso: a outra tecnologia, já aprovada pelas agências regulatórias, não está disponível em nenhum hospital em Portugal. Em Espanha, está em cinco, na Europa em 25”. O que significa que poucos pacientes podem efetivamente ter acesso.
O dispositivo criado pela Ruby Nanomed está atualmente em teste em vários hospitais, como Santa Maria em Lisboa, IPO no Porto e Hospital de Santiago. A equipa está também em conversações com hospitais nos Estados Unidos que querem fazer uma validação clínica. Produzido sem ser em massa, o dispositivo custa 50 euros e, uma vez realizado o exame, fica num total de 500 euros. O que significa que, além da eficácia, também em termos de custo este pode ser um caminho promissor para a deteção e tratamento de metásteses. O custo do dispositivo poderá ainda ser mais baixo - o objetivo com produção em escala é que possa vir a custar não mais que 10 euros. “Em laboratório conseguimos prototipar 20 ou 30 por semana, se tivermos um parceiro podemos massificar e enviar a muito mais sítios para testes”.
Lição da paciência. “Para uma startup científica um dos grandes desafios é transmitir a investidores e parceiros que as coisas não acontecem em seis meses ou um ano, como uma app para telemóvel. É um processo um bocadinho mais longo”
Depois de participarem no Startup Nano em 2016, que venceram, seguiram para a Startup Braga em 2017 e assim chegaram ao Fuel em 2018 com o objetivo de partilhar o seu percurso com projetos de investigação em nanotecnologia que estão agora a dar os primeiros passos para sair do laboratório. Uma das principais lições que Sara lhes traz é sobre paciência. “Para uma startup científica um dos grandes desafios é transmitir a investidores e parceiros que as coisas não acontecem em seis meses ou um ano, como uma app para telemóvel ou com ecommerce. É um processo um bocadinho mais longo que pode demorar quatro ou cinco anos para validação científica da tecnologia”.
Para já, a Ruby Nanomed tem investimento público de Portugal e da União Europeia e tem ganho vários concursos de inovação. Para seguir em frente, vai ser preciso mais, além da paciência: precisam de investimento privado ampliar e acelerar o processo de validação científica e os melhoramentos ou correções que daí possam surgir, que é o desafio que se segue.
Também na área oncológica ouvimos o relato de Rita Rodrigues, da Mag4Biomed, uma equipa só de mulheres de áreas complementares de investigação da Física, à Química e à Engenharia. Inventaram uma espécie de GPS para guiar os fármacos usados no tratamento de tumores para as células que efetivamente estão afetadas, protegendo as células boas. Este é um dos grandes desafios da quimioterapia que é praticadas em muitas das situações de cancro e, após seis anos de pesquisa, estas quatro cientistas têm uma solução que precisam testar em escala e que, em função dos resultados, poderá melhorar a qualidade de vida e o prognóstico de muitas pessoas.
“Desenvolvemos um sistema à escala nanométrica que se chama magnetolipossomas que permite dirigir os fármacos anti-tumorais diretamente ao tumor. Por ser um sistema que é baseado em partículas magnéticas, é possível fazermos o transporte do fármaco diretamente ao local. Quando chega ao local conseguimos dar um input que vai permitir duas coisas: por um lado, fazer a libertação do fármaco que está no magnetolipossoma, por outro fazer um sobreaquecimento das células tumorais que as vai matar seletivamente porque são mais sensíveis ao calor que as células normais. Portanto, estamos a atacar as células tumorais de duas formas”, explica Rita.
Neste momento estão em processo de aceleração para tirar o projeto da área académica e trazê-lo para o mercado. E, sim, como seria de supor, a maior dificuldade é o financiamento. Mas estão otimistas: “estamos para ir à luta e para conseguir”.
Até aqui falámos de projetos na área da saúde em que a investigação em nanotecnologia tem impacto. Mas trata-se de uma área em que o conhecimento permite avanços em campos muito distintos. Por exemplo, no revestimento de painéis solares de forma a aumentar a eficiência desta fonte de energia renovável. É esse o projeto da Chemitek, empresa constituída em fevereiro de 2018, na área dos revestimentos, e que desenvolveu um material novo que pode estender a vida útil dos painéis solares. Ao fim de seis meses, os painéis solares perdem 50% da eficiência devido à sujidade e às partículas que se acumulam. Com este revestimento, esse problema pode ser ultrapassado.
“Este produto surgiu numa conversa entre amigos. Um grande problema dos painéis solares é que como estão na horizontal apanham muita sujidade. Um amigo meu tinha uma empresa de energias renováveis e perguntou-me se conhecia alguma solução que pudesse resolver este problema”, conta o fundador da Chemitek, César Martins. César não tinha solução, mas foi pesquisar o que já havia no mercado e tendo um background em nanotecnologia e desenvolvimento de produtos químicos começou a fazer algumas formulações. Chegou assim aos produtos que a Chemitek agora comercializa. “Desenvolvemos dois produtos: um para os painéis que estão atualmente no mercado, que precisam de ser limpos várias vezes por mês ou por ano. O nosso produto facilita a lavagem e a proteção do painel, é biodegradável, criando um kit anti-estático que repele a sujidade até 12 meses. A outra versão, industrial, de alta performance de repelência dura durante vários anos”.
O mercado da Chemitek é mundial, mesmo que a prioridade atual seja os Estados Unidos, a Europa e a China, os maiores investidores em energias renováveis. O mercado das energias renováveis está a aumentar entre 27 a 31 % por ano e por hora são instalados 70 mil painéis em todo o mundo.
A proposta da Mag2Clean é também de aplicação industrial - diretamente do laboratório para uma das industrias com mais tradição em Portugal, nomeadamente no norte do país. “O nosso projeto começou com a tese de mestrado do Ricardo [um dos três elementos da equipa]. Estamos a desenvolver nanopartículas capazes de deteriorar os corantes usados na tinturarias têxteis que são muito poluentes”, relata Carlos Magalhães, um dos promotores.
A tecnologia que estão a desenvolver propõe um novo método que passa por adicionar partículas, uma espécie de pó, num tanque. “E, com o auxílio de uma fonte de luz visível, essas mesmas partículas vão agarrar o corante e com ação da luz degradá-lo. Depois com um campo magnético ou íman a ideia é recuperá-las para as poder reutilizar”, explica Carlos.
Se o processo provar a sua eficácia, terá um duplo contributo: ajuda o ambiente porque o tratamento é mais eficaz nas tinturarias têxteis e a água que é tratada pode ser usada noutros processos industriais, conseguindo reduzir o consumo nestas indústrias. Que é especialmente elevado: “por exemplo, as pessoas não têm noção que um par de calças de ganga são precisos 3000 litros de águas e assim é possível salvar uma grande parte”.
Para já, os promotores da Mag2Clean estão entusiasmados com os resultados que tem conseguido alcançar com o apoio tecnológico do INL e do CENTI (Centro de Nanotecnologia e Materiais Técnicos, Funcionais e Inteligentes) que lhes abriram as portas para fazer testes e ensaios que até então não tinham conseguido. “O nosso objetivo é padronizar a tecnologia e conseguir escala e preço comportável para as empresas”.
E este relato sobre tecnologias quase invisíveis mas essenciais não ficaria completo sem a história da Smart Separations, a empresa fundada por Hugo Macedo que não começou na garagem, mas na cozinha. Essa nem é a parte mais fora do comum ou não estivéssemos a falar de uma empresa que nasceu a partir da vontade do seu fundador de “produzir sangue” e assim melhorar a vida de milhões de pessoas e que acabou por ver a inovação utilizada - pelo menos na etapa atual - na produção de filtros de cerâmica que são usados para purificar o ar.
Lição da incerteza. “Ser empreendedor é como saltar do avião e construir o paraquedas no caminho”
Vamos por partes. A Smart Separations nasceu há cinco anos em Londres a partir do doutoramento e pós doutoramento de Hugo Macedo, português de pertinho de Braga, no prestigiado Imperial College. Na realidade, a história começa bem antes, quando Hugo foi pela primeira vez para Londres. “Fui o primeiro estudante de Erasmus da Universidade Nova de Lisboa/FCT. Fui para o Imperial College e, depois disso, o professor que acompanhou o meu projeto convidou-me a voltar a Inglaterra”. O projeto era então a produção de sangue em laboratório - e o aluno português estava entusiasmado. “Existe uma grande falta de sangue em todo o mundo. Cerca de um terço da população vai precisar de sangue ao longo da vida mas apenas 5% é que faz doação de sangue. E este foi o ponto principal de interesse no meu doutoramento - produzir sangue em laboratório”.
A verdade é que nem tudo correu como tinha imaginado. Ou, nas suas palavras, percebeu que “não estava no ambiente correto”. E foi nesse momento que o engenheiro químico com doutoramento em engenharia biomédica decidiu sair do Imperial College e ir experimentar produzir sangue num laboratório instalado na cozinha da sua casa. Tinha dinheiro de parte para se “aguentar seis meses” sem rendimentos mas rapidamente percebeu que não podia fazer sangue na cozinha. Em contrapartida, podia utilizar a aprendizagem sobre as membranas de cerâmica que trazia do doutoramento para outros fins. Ainda na cozinha, comprou produtos e começou a fazer testes - para produzir uma membrana de cerâmica cuja finalidade podia ser diversa.
“A ideia base é a produção de um filtro em cerâmica que tem poros que são cónicos e que se criam a eles próprios através do processo de produção da membrana em tamanhos mínimos (um milímetro dividido em mil pedaços) que vão de um mícron a 60 mícrons que é a espessura de um cabelo humano. Estes poros têm aplicações em muitas áreas - e esta foi uma das dificuldades, onde aplicar”, recorda. Ao fim de três meses neste processo estava a fundar a Smart Separations com ajuda da família - apresenta o pai como o seu primeiro investidor. Seguiu-se a mudança da cozinha para um anexo emprestado por um tio onde percebeu que a primeira investigação estava errada. O que não foi propriamente uma má notícia: conseguiu resolver o erro e chegou à tecnologia que hoje está a levar para o mercado.
Algures no processo, Hugo Macedo conheceu alguém que decidiu investir na ideia porque viu nela uma aplicação para a indústria onde estava, a de sistemas de purificação do ar. A Smart Seprations ganhou assim o seu primeiro - e até agora único - investidor e, já mais recentemente, recebeu um financiamento do Horizonte 2020, de 2,8 milhões de euros. Hoje emprega 14 pessoas, está instalada no parque industrial da Universidade de Surrey em Inglaterra, mas já tem uma “irmã” em Portugal, onde Hugo gostaria de de instalar. Veio a Braga partilhar com projetos mais jovens o que tem apreendido e gosta especialmente de lhes dizer uma frase: “ ser empreendedor é como saltar do avião e construir o paraquedas no caminho”.
The Next Big Idea é um site de inovação e empreendedorismo, com a mais completa base de dados de startups e incubadoras do país. Aqui encontra as histórias e os protagonistas que contam como estamos a mudar o presente e a inventar o que vai ser o futuro. Veja todas as histórias em www.thenextbigidea.pt
Comentários